quinta-feira, 23 de agosto de 2012

O FUTURO DE ISRAEL NA TEOLOGIA DE PAULO: Uma Interpretação Não-milenar de Romanos 11 / Parte 3.

Importante: O texto a seguir é de autoria de Lee Irons, PhD em Novo Testamento pelo Seminário Teológico Fuller. Também foi pastor da Capela Presbiteriana Ortodoxa Redentor em Van Nuys, Califórnia.

...continuação.

(4) A redefinição de Israel como um tema em Romanos.

A quarta linha de raciocínio é o contexto de Romanos como um todo. Levaria muito mais tempo do que aquele disponível aqui para fazermos isso apropriadamente, mas creio que eu posso mostrar que um dos temas dominantes da epístola aos Romanos é atacar um mau entendimento judaico prevalecente no primeiro século. Esse mau entendimento era que todos os israelitas (isto é, os circuncidados) seriam salvos, exceto talvez aqueles que tivessem caído em apostasia total. Um tratado do Mishná declara:
“Todos os israelitas têm uma porção no mundo vindouro” (Sanhedrin 10:1).
Ele continua para fazer as seguintes exceções: aqueles que negam a ressurreição da morte, aqueles que rejeitam a Torá, ou aqueles que são epicureus (isto é, dados à imoralidade e ao prazer). A polêmica de Paulo contra essa presunção arrogante começa no capítulo 2, onde ele ataca abertamente o favoritismo implícito em tal visão: “Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego; glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego. Porque não há parcialidade com Deus” (vv. 9-11). Parcialidade pode também ser traduzida como favoritismo. Os judeus criam (falsamente) que eles poderiam viver da forma como lhes agradassem, na segurança carnal de que a circuncisão deles garantiria a salvação no dia final (conquanto que eles não caíssem num dos extremos mencionados no Mishná). Em essência, os judeus estavam esperando que Deus lhes desse uma oportunidade no dia do julgamento, que ele lhes mostrasse parcialidade. Certamente os gentios não poderiam esperar tal misericórdia. Assim, quando Paulo declara que “tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego”, ele está fazendo uma afirmação quase impensável.
Agora, parte da refutação de Paulo dessa segurança tristemente errônea envolve uma redefinição do valor da circuncisão. Ele declara no final do capítulo dois: “Porque não é judeu quem o é apenas exteriormente, nem é circuncisão a que é somente na carne. Porém judeu é aquele que o é interiormente, e circuncisão, a que é do coração, pelo Espírito, não pela letra”. De fato, Paulo encerra o capítulo de uma forma tão ousada que faz uma pergunta ainda mais radical: “Se, pois, a incircuncisão observa os preceitos da lei, não será ela, porventura, considerada como circuncisão?” (v. 26).

Você vê o que Paulo está fazendo aqui? Ele está demolindo a teologia judaica tradicional ao afirmar que não é a circuncisão ou a membresia na comunidade de Israel que determina a salvação, mas a observação da lei. “Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados” (v. 12). Se assim, então é teoricamente possível que muitos judeus seriam condenados e muitos gentios salvos. Um novo critério está sendo introduzido para definir aqueles que são os herdeiros legítimos das promessas abraâmicas. Uma nova definição de Israel está emergindo.

Nesse ponto no argumento de Romanos, Paulo está meramente lançando um fundamento. Ele não tinha ainda formalmente introduzido a doutrina da justificação pela fé somente, por causa de Cristo somente. Portanto, seria injustificável ler nas declarações de Paulo, nesse estágio primário, um conceito redefinido de Israel amplo o suficiente para incluir os gentios. Mas o fundamento está sendo lançado. Assim, é absolutamente essencial que observemos quando Paulo levanta esse tema novamente no capítulo nove. Assim como no capítulo dois, Paulo ataca a idéia de que todos os descendentes circuncidados de Abraão fossem automaticamente salvos. Ele assim o faz listando dois contra-exemplos que destroem a visão judaica tradicional de que “todos israelitas têm uma porção no mundo vindouro”. Eles são Ismael e Esaú (9:6-13), ambos circuncidados e ainda assim rejeitados como filhos da promessa. Assim como Paulo redefiniu circuncisão no capítulo dois dizendo, em efeito: “nem todos aqueles que são da circuncisão são circuncisão”, assim ele redefine Israel no versículo seis, quando diz: “nem todos aqueles que são de Israel são Israel”. Admitidamente, o contexto imediato garante somente uma divisão dentro da comunidade de Israel: alguns judeus são eleitos, outros não. Estaria além do texto tomar a afirmação de 9:6 como prova da idéia de que Paulo está redefinindo Israel para incluir qualquer outra coisa além de judeus circuncidados.

Contudo, mais tarde no mesmo capítulo (9:24-26) encontramos a primeira referência explícita aos gentios como membros iguais com os judeus do povo de Deus. Isso é evidente a partir de duas considerações. Primeiro, o argumento começa no v. 6 e continua até o v. 24. Paulo estava afirmando a soberania de Deus ao escolher Isaque e rejeitar Esaú, para fazer da mesma massa de barro vários vasos, alguns para honra e outros para uso comum. Em face disso, a discussão da eleição incondicional, até o v. 24, tem se focado somente numa eleição dentro de Israel. Mas no v. 24 Paulo amplia o escopo de sua discussão para incluir os gentios. Tudo o que ele já tinha dito sobre a natureza absolutamente incondicional da eleição soberana de Deus de certos israelitas para a vida eterna aplica-se com igual validade a “nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios” (v. 24).

A segunda consideração é citação de Paulo de Oséias 2:23 e 1:10 no vv. 25-26. No contexto original, Oséias não diz nada sobre os gentios. O epíteto “Não meu povo” é aplicado por Oséias com referência ao Israel adúltero, que estava sendo ameaçado com divórcio pactual por causa de sua idolatria. Todavia, Paulo aplica o termo aos gentios. “Chamarei povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada; e no lugar em que se lhes disse: Vós não sois meu povo, ali mesmo serão chamados filhos do Deus vivo”. É inegavelmente claro que Paulo tinha finalmente deixado explícita uma idéia que já tinha ficado implícita no capítulo dois. Se há uma eleição dentro de uma eleição, um Israel dentro de um Israel, então segue-se inexoravelmente que o critério de membresia no “povo de Deus” tem pouco a ver com circuncisão ou relação étnica para com Abraão. Se ser um israelita não torna necessariamente uma pessoa num verdadeiro israelita, então uma pessoa não precisa ser um israelita para ser um verdadeiro israelita. A porta tinha agora sido aberta para permitir que gentios fossem contados como verdadeiros israelitas.

Lembre-se que em 2:12 Paulo nos diz que o critério para ser um verdadeiro israelita é: a pessoa deve ser um observador da lei para ser considerado como justo. No curso do seu argumento, Paulo explica como é que pecadores podem ser justificados (contados como justos) guardando a lei: confiando em Cristo, o observador representativo da lei. “Porque o telos da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”(10:4), “pois não há distinção entre judeu e grego” (10:12). Não é mais a circuncisão ou o ser um membro da comunidade de Israel segundo a carne que constitui alguém um verdadeiro israelita, um justo. Agora que Cristo veio como a consumação final de tudo o que a lei significava e requeria (isto é, seu telos), o único critério que define “Israel” é a fé em Cristo. “No qual não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos” (Colossenses 3:11).

Assim, parece totalmente claro que em Romanos Paulo esteve construindo um caso, passo a passo, gradualmente levando a uma transformação cristológica do conceito “Israel” de uma tal forma que os gentios pudessem agora ser inclusos. Paulo intencionalmente estabelece a distinção radical entre dois Israels, duas eleições, e duas circuncisões para o mesmo propósito de preparar o caminho para essa conclusão climática (11:26).

N. T. Wright argumenta que...
Paulo realmente começa toda a seção (9.6) com... uma distinção programática de dois “Israels”, e por toda a carta (e.g. 2:25-9) bem como em outros lugares (e.g. Filipenses 3.2-11) ele esteve transferindo sistematicamente os privilégios e atributos de “Israel” para o Messias e o seu povo. É, portanto, grandemente preferível tomar “todo Israel” no v. 26 como uma redefinição polêmica tipicamente Paulina, como em Gálatas 6:16... e em linha também como Filipenses 3.2ss, onde a igreja é descrita como “a circuncisão”. [10]
 Portanto, tomar “todo Israel” como uma referência à igreja não é somente natural (visto que o leitor vinha sendo preparado para isso desde o capítulo dois), mas necessário para se alcançar uma resolução satisfatória para as questões que tinham sido levantadas durante todo o curso do extenso argumento de Paulo. Essa interpretação tem a grande vantagem de unificar os primeiros onze capítulos de Romanos e trazer o todo a um crescimento climático da percepção redentivo-histórica. “E assim todo o Israel será salvo”.

(5) A fidelidade de Deus às suas promessas.

O quinto e último argumento para se tomar “todo Israel” como uma redefinição paulina polêmica de Israel é que ela fornece uma resposta satisfatória para a pergunta urgente: “Terá Deus, porventura, rejeitado o seu povo?” (11:1). De acordo com Robertson e aqueles amilenistas de sua estirpe, a resposta de Paulo é: “Não, pois os judeus eleitos estão sendo trazidos à Cristo por toda a era da igreja”. Mas essa não é uma conclusão banal? Se essa fosse de fato sua solução para o aparente fracasso das promessas de Deus ao seu antigo povo, por que ele teria que suar num desenvolvimento teológico extenso num capítulo inteiro? Se isso é tudo, porque Paulo não terminou simplesmente o capítulo no v. 5? “Assim [como Deus tinha reservado 7.000 homens que não se curvaram diante de Baal], pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça”. A razão é que isso não responde realmente a questão: “Como Deus está cumprindo suas promessas irrevogáveis a Israel?”.

Agora, de acordo com pós-milenistas e aqueles amilenistas que tomam “todo Israel” para se referir à última geração de judeus, Deus finalmente cumprirá suas promessas convertendo soberanamente uma vasta multidão de judeus de uma só vez no final da era. Mas isso não será um pouco desapontador? Por que tal reavivamento em massa de apenas uma pequena porção de todos os judeus que já viveram constitui o cumprimento final das promessas irrevogáveis de Deus a Israel? Certamente os pré-milenistas têm uma tremenda vantagem nesse ponto, visto que eles não resolvem o problema da fidelidade de Deus meramente apontando conversões judaicas numa larga escala. Eles têm um reino milenar terreno no qual eles podem realizar esse cumprimento tanto quanto os corações deles desejarem.

Outros têm habilmente demonstrado que a exegese pré-milenista de Apocalipse 20 não é uma opção exegética viável. [11] Contudo, para aqueles que são pós-milenistas ou alguém dos outros dois ramos do amilenismo, eu faço o seguinte apelo: Não temos escolha senão pressupor que “os dons e o chamado de Deus” com respeito a Israel “são irrevogáveis” (11:29) e que “Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu” (11:2). Devemos crer nisso não somente por causa dos textos citados, mas por outras considerações teológicas pertinentes também (e.g., a fidelidade de Deus às suas promessas; a imutabilidade da eleição divina, etc.). E devemos pressupor que esse “chamado” e “pré-conhecimento” de Israel pertence à relação entre Deus e Israel como uma entidade pactual ou corporativa. Deus pré-conheceu Israel, isto é, ele escolheu Israel dentre todas as nações da terra para ser seu povo peculiar, um reino de sacerdotes e uma nação santa (Deuteronômio 7:6-8; Êxodo 19:5-6). Claramente, o que temos aqui é a idéia de uma eleição nacional (que não deve ser identificada com a eleição individual, como provam os exemplos de Ismael e Esaú).

Agora, então, a questão que devemos enfrentar diretamente (e que Paulo está tratando em Romanos 11) é esta: como é que a vasta maioria dos judeus pós-pentecoste tinham rejeitado Jesus como o Messias e, portanto, se perderam? Dado esse fato inegável, como justificaremos teologicamente a verdade não-negociável de que as promessas de Deus para Israel como um povo, uma identidade corporativa, não podem ser quebradas?

Eu estabeleci que se rejeitarmos a posição pré-milenista, não temos escolha senão afirmar (com Paulo e o testemunho uniforme do Novo Testamento) que a igreja é a continuação, de fato a consumação, das promessas de Deus para Israel. Os ramos individuais podem ser removidos da oliveira pactual, mas a fidelidade de Deus garante que a oliveira em si permanecerá, mesmo que isso signifique que novos ramos devam ser encontrados para substituírem os antigos. A fidelidade da Deus às promessas feitas aos patriarcas encontram expressão, não na salvação do remanescente dos judeus eleitos meramente, muito menos numa conversão nacional futura, mas na entrada dos gentios no pacto, juntamente com o ciúme concomitante que provoca os judeus eleitos à fé em Cristo por toda a era da igreja. É dessa maneira que “todo Israel” será salvo”.

Qual, então, é a teologia de Paulo do futuro de Israel? Em resumo: a igreja.

Apêndice.

O que dizer sobre os versículos 12 e 15? Esses dois versículos não suportam claramente a esperança de um reavivamento ainda futuro da nação judaica? Contrário à aparente importância desses versículos nas traduções portuguesas, creio que eles não apóiam tal visão. Uma leitura superficial do texto sem consultar o grego levaria alguém a crer que Paulo tinha em vista um processo de quatro passos:
  • Primeiro, os judeus cometeram a transgressão de rejeitar a Cristo.
  • Segundo, o fracasso dos judeus leva à salvação dos gentios.
  • Terceiro, isso causa ciúmes nos judeus, fazendo-lhes assim retornar à fé.
  • Quarto, isso por sua vez causa um reavivamento ainda maior entre os gentios.
Deixe-me trazer sua atenção para dois pontos exegéticos que penso minar significativamente tal construção:

Primeiro, essa visão requer que o intérprete assuma, sem garantia, que há uma elipse no final de cada versículo. Assim, o versículo 12 seria traduzido: “Ora se a transgressão deles é a riqueza do mundo, e a sua perdição a riqueza dos gentios, quanto muito mais a plenitude deles será riquezas para os gentios”. Essa última clausula não é encontrada no texto, mas deve ser adicionada. Mas não há garantia para adicionar “riqueza para os gentios” no lugar de “riquezas para o próprio Israel”.

Segundo, há duas construções genitivas no versículo 12 que estão incorretamente traduzidas como “riquezas para o mundo” e “riquezas para os gentios”. Essas frases genitivas deveriam ser traduzidas como “a riqueza do mundo” e “a riqueza dos gentios”. Quanto isso é feito, torna-se impossível não observar que essa é uma frase que ocorre frequentemente no texto de Isaías da Septuaginta. De fato, ela ocorreu no mesmíssimo contexto da passagem que Paulo cita mais tarde no v. 26 (Isaías 59:20-60:22). Em Isaías o genitivo é mais provavelmente exegético: “a riqueza que consiste dos gentios” Isaías 60:11; compare Apocalipse 21:24-26; Zacarias 14:16-19).

Assim, uma melhor tradução do versículo 12 seria a seguinte: “Ora se a transgressão deles é a riqueza do mundo, e a sua perdição a riqueza dos gentios, quanto muito mais a sua plenitude será?”. Para parafrasear: “Se o fracasso de Israel resultou numa riqueza de gentios entrando no reino, quanto mais a plenitude de Israel será caracterizada por maior riqueza?”. Não é até chegarmos ao v. 26 que entendemos mais precisamente o conceito de Paulo da natureza dessa maior riqueza (isto é, a glória da igreja de Cristo composta tanto de judeus como de gentios).

Chegamos ao final do estudo sobre Romanos 11:26 pelo ponto de vista amilenista, por Lee Irons.


[10] Wright, p. 250.
[11] Meredith G. Kline, "The First Resurrection," WTJ 37 (1975) 366-75. Cf. também William Hendriksen, Mais Que Vencedores: Uma Interpretação do Livro do Apocalipse (Grand Rapids: Baker, 1967).

3 comentários:

  1. Olá MAC

    Meu nome é Victor, sou adm do blog/site Verdade do Fim.
    Ele tem como objetivos alertar o povo de Deus para a real verdade que a Bíblia nos diz, e não acreditar em doutrinas feitas no século XIX. Ele também abrange assuntos como a Nova Ordem Mundial, mas sempre em prioridade a Escatologia.

    Link:http://verdadedofim.blogspot.com.br/

    Me mande uma resposta por email, no averdadedofim@gmail.com.

    Aguardo resposta, abraços ;)

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  2. Valeu Victor, responderei conforme pedido por você.

    Abraço.

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  3. Tenho uma grande dúvida, após o juízo final, quando começar a nova era futura, o ser humano ainda continuara existindo, nascendo, crescendo, me expliquem: a carne e o sangue não podem herdar o reino de Deus.

    Sergio

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