quarta-feira, 9 de maio de 2012

Diferentes Dispensações da Aliança.

Importante: O texto à seguir é de autoria de Louis Berkhof (1873-1957), teólogo sistemático reformado cujas obras têm sido muito influentes na teologia Calvinista da América do Norte e da América Latina. Ensinou por quase quatro décadas no Calvin Theological Seminary.

Levanta-se a questão sobre se devemos distinguir duas ou três dispensações, ou, com os dispensacionalistas modernos, sete ou até mais.

1. O CONCEITO DISPENSACIONALISTA.

Segundo Scofield,
“uma dispensação é um período de tempo durante o qual o homem é provado quanto à obediência a alguma revelação específica da vontade de Deus”. [01]
Dando mais ampla explicação disso, diz ele na página 20 do seu folheto sobre a Correta Divisão da Palavra de Deus (Rightly Dividing the Word of Ttuth):
“Cada dispensação pode ser considerada como uma nova prova do homem natural, e cada uma delas termina em juízo – assinalando o seu fracasso”.
Toda dispensação tem suas próprias características, e é tão distinta das demais que não pode ser misturada com nenhuma delas. Geralmente se distinguem sete dispensações: as dispensações da inocência, do governo humano, da promessa, da lei, da graça e do reino. Em resposta à questão sobre se Deus é assim tão inconstante que precisou mudar a Sua vontade, a respeito do homem, sete vezes, Frank E. Gaebelein replica:
“Não é Deus que vacilou. Embora haja sete dispensações, em princípio são uma só, totalmente baseada na prova única da obediência. E se o homem fosse achado capaz de preencher as condições baixadas pela primeira dispensação, as outras seis seriam desnecessárias. Mas o homem falhou. Contudo, em vez de expulsar a Sua criatura culpada, Deus se compadeceu e o submeteu a nova prova sob novas condições. Assim, cada dispensação termina com o fracasso do homem e, cada dispensação demonstra a misericórdia de Deus”. [02]
Há sérias objeções a esse conceito. (a) A palavra dispensação (oikonomia), que é um termo bíblico (cf. Lc 16.2-4; 1 Co 9.17; Ef 1.10; 3.2, 9; Cl 1.25; 1 Tm 1.4), aqui é empregada num sentido antibíblico. A referida palavra indica mordomia, uma disposição ou uma administração, mas nunca um período de prova ou de experiência. (b) É evidente que as distinções são completamente arbitrárias. Já o patenteia o fato de que os próprios dispensacionalistas dizem que elas se sobrepõem umas às outras. A segunda dispensação é chamada dispensação da consciência, mas, segundo Paulo, a consciência continuava sendo o inspetor dos gentios nos seus dias, Rm 2.14,15. A terceira é conhecida como dispensação do governo humano, mas o seu mandamento específico, que foi desobedecido e que, portanto, tornou o homem passível de julgamento, não foi o mandamento para governar o mundo em lugar de Deus – coisa da qual não há vestígio – mas o mandamento para encher a terra. A quarta recebe o designativo de dispensação da promessa e se supõe haver terminado com a dádiva da lei, mas Paulo afirma que a lei não anulou a promessa e que esta continuava vigente nos seus dias, Rm 4.13-17; Gl 3.15-29. A dispensação da lei, assim chamada, está repleta de gloriosas promessas, e a dispensação da graça, assim chamada, não abrogou a lei como regra de vida. A graça só oferece escape da lei como condição de salvação (como ocorre na aliança das obras), da maldição da lei e da lei como poder suplementar. (c) De acordo com a descrição usual desta teoria, o homem está sempre em prova. Ele falhou na primeira prova e assim perdeu a recompensa da vida eterna, mas Deus se compadeceu dele e, por Sua misericórdia, deu-lhe nova oportunidade de experiência. Repetidos fracassos levaram a repetidas manifestações da misericórdia de Deus com a introdução de novas experiências que, todavia, mantiveram o homem em prova o tempo todo. Isto não é equivalente a dizer que Deus com justiça prende o homem natural à condição da aliança das obras – o que é perfeitamente verdadeiro – mas que Deus, com misericórdia e compaixão e, portanto, aparentemente para salvar o homem, dá-lhe oportunidade após oportunidade de satisfazer as condições sempre variantes e, assim, obter a vida eterna pela prestação de obediência a Deus. Esta representação é contrária à Escritura, que não descreve o homem decaído como ainda em prova, mas como um completo fracasso, totalmente incapaz de prestar obediência a Deus, e absolutamente dependente da graça de Deus para a salvação. Bullinger, ele próprio um dispensacionalista, se bem que de um tipo diferente, está certo quando diz:
“O homem estava então (na primeira dispensação) no que se chama ‘sob prova’. Isso marca aquela administração aguda e absolutamente; pois agora o homem não está sob prova. Supor que está é uma falácia popular que fere a raiz das doutrinas da graça. O homem foi experimentado e provado, e provou que é uma ruína”. [03]
(d) Esta teoria é também de tendência divisora, desmembrando o organismo da Escritura com resultados desastrosos. Segundo a teoria em foco, as partes da escritura que pertencem a uma das dispensações são dirigidas ao povo dessa dispensação e a mais ninguém, e só têm significação para esse povo. Significa, nas palavras de Charles C. Cook,
“que no velho testamento não há uma única sentença que se aplique ao cristão como regra de fé e prática – nem um só mandamento que o obrigue, como também não há ali uma única promessa dada a ele em primeira mão, exceto aquilo que está incluído na vasta corrente do plano de redenção, ali ensinado por meio de símbolos e profecias”. [04]
Não significa, diz a teoria em apreço, que não podemos extrair lições do Velho testamento. A Bíblia está dividida em dois livros, o Livro do Reino, que compreende o Velho Testamento; e o Livro da Igreja, que consiste do restante do Novo testamento e é dirigido a nós. Desde que as dispensações não se misturam, segue-se que na dispensação da lei não há nenhuma revelação da graça de Deus, e na dispensação da graça, nenhuma revelação da lei no sentido de obrigar o povo de Deus do tempo do Novo testamento. Se o espaço no-lo permitisse, não nos seria difícil provar que esta posição é inteiramente insustentável.

2. TEORIA DAS TRÊS DISPENSAÇÕES.

Irineu falava em três alianças, a primeira caracterizada pela lei escrita no coração, a segunda, pela lei como mandamento externo dado no Sinai, e a terceira, pela lei restabelecida no coração pela operação do Espírito Santo; e assim ele sugeriu a idéia de três dispensações. Coceio distinguia três dispensações da aliança da graça, a primeira ante legem, a segunda sub lege e a terceira post legem (respectivamente, antes da lei, sob a lei e após a lei). Ele fazia, pois, aguda distinção entre a administração da aliança posterior a Moisés. Pois bem, é indubitavelmente certo que há considerável diferença entre a administração da aliança antes e depois da dádiva da lei, mas a similaridade é maior que a diferença, de modo que não se justifica coordenar a obra de Moisés com a de Cristo como uma linha divisória da administração da aliança. Pode-se notar os seguintes pontos de diferença:

a. Na graça como a manifesta característica da aliança. No período patriarcal a graça, como a característica da aliança, projetou-se mais proeminentemente que no período posterior. A promessa estava mais na primeira plana, Rm 4.13; Gl 3.18. Contudo, mesmo isto não deve ser indevidamente salientado, como se não houvesse fardos legais, quer morais quer cerimoniais, antes do tempo de Moisés, e como se não houvesse promessa da graça durante o período da lei. A substância da lei estava em vigor antes de Moisés, e já exigiam sacrifícios. E promessas decorrentes da graça acham-se com abundancia nos escritos pós-mosaicos. O único ponto real de diferença é este: Uma vez que a lei constituía para Israel uma explícita recordação das exigências da aliança das obras, havia maior perigo de confundir o caminho da lei com o caminho da salvação. E a história de Israel nos ensina que ele não escapou desse perigo.
b. Na ênfase ao caráter espiritual das bênçãos. O caráter espiritual das bênçãos sobressaía mais claramente no período patriarcal. Abraão, Isaque e Jacó eram simples residentes temporários na terra da promessa, morando lá como estrangeiros e peregrinos. A promessa temporal da aliança ainda não se cumprira. Daí, havia menor risco de fixar a atenção exclusivamente nas bênçãos materiais, como os judeus fizeram mais tarde. Os primeiros patriarcas tinham uma compreensão mais clara do sentido simbólico daquelas posses materiais, e buscavam uma cidade celestial, Gl 4,25, 26; Hb 11.9,10.
c. No entendimento da destinação universal da aliança. A destinação universal da aliança era mais claramente evidente no período patriarcal. Foi dito a Abrão que em sua semente seriam abençoadas todas as nações do mundo, Gn 22.18; Rm 4.13-17; Gl 3.8. Aos poucos os judeus foram perdendo de vista este fato importante, e passaram a supor que as bênçãos da aliança estavam restritas à nação judaica. Todavia, os últimos profetas deram ênfase à universalidade das promessas, e assim reviveram a consciência da significação mundial da aliança.

Mas, conquanto existissem essas diferenças, havia diversos pontos importantes em que os períodos pré e pós-mosaicos concordavam e nos quais ambos, em conjunto, diferiam da dispensação cristã. Enquanto a diferença entre ambos era apenas de grau, a sua diferença em comum da dispensação do Novo Testamento é de contraste. Em contraste com a dispensação cristã, os períodos do Velho Testamento concordam:

a. Na apresentação do mediador como semente ainda futura. Todo o Velho Testamento aponta para a então futura vinda do Messias. Este olhar prospectivo caracteriza o proto-evangelho, a promessa feita aos patriarcas, todo o ritual mosaico e as mensagens centrais dos profetas.
b. Na prefiguração em cerimônias e tipos do Redentor por vir. É Certo que estes aumentaram depois da entrega da lei, mas estavam presentes muito tempo antes disso. Já nos primitivos dias de Caim e Abel eram oferecidos sacrifícios, e estes tinham também um caráter peculiar, ou seja, expiatório, apontando para o grande sacrifício de Jesus Cristo. Os que serviam como sacerdotes eram sombras e símbolos do grande Sumo sacerdote vindouro. Em distinção do Velho Testamento, o Novo é mais comemorativo que prefigurativo.
c. Na prefiguração das vicissitudes dos que estavam destinados a compartilhar as realidades espirituais da aliança na carreira terrena dos grupos que estavam em relação pactual com Deus. A peregrinação dos patriarcas na Terra Santa, a servidão no Egito, a entrada em Canaã, apontavam para coisas espirituais superiores no futuro. No Novo Testamento, esses tipos todos alcançam o seu cumprimento e, portanto, cessam.

Com base em tudo quanto acima foi dito, é preferível seguir as linhas tradicionais distinguindo apenas duas dispensações ou administrações, quais sejam, a do Velho Testamento e a do Novo; e subdividir a primeira em vários períodos ou estágios da revelação da aliança da graça.

[01] Scofield Bible, p. 5.
[02] Exploring the Bible, p. 95.
[03] How to Enjoy the Bible, p. 65.
[04] God’s Book Speaking For Itself, p. 31.

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