quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Avaliando o Pré-milenismo - Parte 4

 ...continuação.

Importante: O texto a seguir é de autoria de Cornelis P. Venema, Deão e professor de Estudos Doutrinários no Seminário Reformado Mid-America em Dyer, Indiana. É Doutor pelo Seminário Teológico de Princeton e pastor da igreja Reformada Cristã.

A hermenêutica do literalismo.

Um dos aspectos característicos do dispensacionalismo é sua insistência em uma leitura "literal" da Bíblia. Ao longo de sua história, muitos dos seus defensores alegaram que pontos de vista alternativos do milênio refletem uma concepção pobre da autoridade das Escrituras porque eles não seguem esta hermenêutica. [01] Especialmente quando se trata de profecias da Bíblia que se relacionam com o povo terreno de Deus, Israel, dispensacionalistas insistem que elas devem ser lidas literalmente. É freqüentemente alegado que as leituras alternativas dessas profecias minam a autoridade da Bíblia por espiritualizá-la de forma ilegítima, bem como suas promessas.
Esta ênfase em uma hermenêutica literal está intimamente ligada à distinção dispensacionalista entre o povo terreno de Deus, Israel, e seu povo celestial, a Igreja. Argumenta-se que as profecias e promessas bíblicas que se relacionam com Israel devem corresponder a este como um povo distinto. Porque Israel é uma entidade étnica e nacional com uma história e um identidade concreta e literal, deve ser igualmente literal e concreta qualquer que seja a promessa bíblica referente a ela. [02] Assim, se as Escrituras devem ser interpretadas corretamente, devem ser sempre tomadas em seu sentido literal, exceto se tal for impossível.

1 - O que é "literal"?

A fim de avaliar a hermenêutica dispensacional do literalismo, é necessário definir com mais precisão o que se entende por uma leitura literal da Bíblia. Sobre isso, as opiniões variam entre os dispensacionalistas.
É interessante observar que mesmo no caso de Scofield e a forma clássica do dispensacionalismo, a ênfase sobre uma hermenêutica literal foi pouco qualificada. Segundo ele, os livros históricos da Bíblia não são somente verdadeiros literalmente, mas muitas vezes também possuem significado alegórico ou espiritual. Um acontecimento histórico, como a relação entre Isaac e Ismael, é literalmente verdade, mas também pode ter um sentido e significado adicional (ver Gl 4:23-31). No entanto, no caso dos livros proféticos, Scofield insistiu que:
"Chegamos ao terreno da literalidade absoluta. Figuras são freqüentemente encontradas nas Escrituras, mas a figura invariavelmente tem um cumprimento literal. Não existe uma ocorrência de um cumprimento figurativo ou 'espiritual' da profecia... Jerusalém é sempre Jerusalém, Israel é sempre Israel, Sião é sempre Sião... Profecias nunca podem ser espiritualizadas, são sempre literais." [03]
Esta é uma afirmação forte. Ela declara que todas as profecias Bíblicas têm um cumprimento literal, de modo que sempre que elas não são interpretadas literalmente, mas figuradamente, seu significado é necessariamente distorcido. Entretanto, a declaração também admite, pelo menos no que diz respeito à passagens históricas, que os eventos registrados podem ser interpretados também em termos de seu significado espiritual.
Entre autores dispensacionalistas posteriores, novas tentativas foram feitas para definir o que se entende por uma hermenêutica literal. Duas definições representativas foram dadas por Charles C. Ryrie em seu Dispensacionalismo Hoje [04] e Paul Lee Tan em A Interpretação da Profecia. [05]
Ryrie dá o seguinte relato da posição dispensacionalista:
"Os dispensacionalistas afirmam que seu princípio de hermenêutica é o da interpretação literal. Esta interpretação significa que ela dá a cada palavra o mesmo significado que teria em condições normais de uso, seja empregada em escrever, falar ou pensar." [06]
Em sua exposição desta alegação, Ryrie prossegue argumentando que o "uso normal" é realmente o equivalente a uma interpretação gramatical e histórica do texto. Toma as palavras em seu sentido normal, comum ou ordinário. A definição de Tan dessa hermenêutica é bastante semelhante:
"'Interpretar' significa explicar o sentido original de um narrador ou escritor. Interpretar 'literalmente' significa explicar o sentido original do narrador ou escritor de acordo com o uso normal, habitual e adequado das palavras e da linguagem. Interpretação literal da Bíblia significa simplesmente explicar o sentido original do texto bíblico conforme o uso normal e habitual de sua linguagem." [07]
Como Ryrie, Tan sustenta que uma leitura literal dos textos bíblicos é o mesmo que uma leitura gramático-histórica, que simplesmente toma as palavras e a linguagem do texto em seu sentido ordinário, comum e simples.
Apesar dessas variações, a principal reivindicação do dispensacionalismo é que os textos bíblicos devem ser lidos em seu sentido comum, ordinário, ou literal, especialmente quando tais textos falam do povo terreno de Deus, Israel, bem como de promessas dirigidas a esta nação. Embora a presença da linguagem não literal e figurativa não seja completamente negada - mesmo Scofield reconhece a possibilidade de interpretações espiritualizadas de eventos históricos -, a primeira regra para qualquer leitura de um texto bíblico é que ele deve ser lido da forma mais literal possível.

2 - Avaliando a hermenêutica do literalismo.

Sem dúvida, autores dispensacionalistas diferem consideravelmente sobre o assunto de uma leitura literal da Bíblia. Variações são evidentes entre as formas mais clássicas e antigas do dispensacionalismo, e as formas revisionistas e progressivas mais recentes. No entanto, tomaremos as duas definições citadas como uma representação justa da visão predominante entre os dispensacionalistas.
Quando consideramos essas definições típicas do que constitui uma hermenêutica literal, dois problemas imediatamente se destacam.

Literal e talvez espiritual.

O primeiro problema é o reconhecimento tácito de que uma leitura literal do texto não precisa excluir um significado espiritual ou uma linguagem simbólica e figurada. Na posição original de Scofield, uma distinção arbitrária é feita entre os textos históricos e proféticos. Esta distinção é feita de modo a permitir a possibilidade de que textos históricos podem ter tanto um significado literal como um espiritual. Embora Scofield afirme que isso nunca é possível no caso de textos proféticos, não parece haver nenhuma razão para que esse não possa ser o caso. Por que textos históricos que falam de Jerusalém têm um significado espiritual, enquanto textos proféticos que falam de Jerusalém devem invariavelmente ter um significado literal? Além disso, a possibilidade de elementos não literais indica que é um tanto quanto simplista e enganoso insistir que os textos sempre devem ser lidos literalmente.

Literal, mas não realmente literal.

Um segundo e ainda mais fundamental problema com essas definições é a tentativa de identificar "literal" com uma leitura gramático-histórica do texto, que por sua vez, é identificado com a tomada de palavras em seu sentido normal e simples. O problema com esta abordagem é que ela levanta a questão do que "literal", "normal", ou "simples" significa exatamente. Isso pode ser ilustrado considerando o significado da palavra "literal".
O "sentido literal" é uma tradução do Latin sensus literalis que significa "o sentido de, segundo a letra". Isto é, os textos devem ser lidos como linguagem e literatura de acordo com as regras que normalmente e de forma adequada se aplicam ao seu uso e formas. Isso significa que se o texto é poesia, deve ser lido, segundo a letra, como poesia. Se o texto é uma narrativa histórica, recontando os eventos que ocorreram em um determinado tempo e lugar, ele deve ser lido como narrativa histórica. Se o texto utiliza formas de linguagem - símbolos, figuras, metáforas, símiles, comparações, hipérboles, etc. - é para ser lido segundo a letra, tratando tais formas de maneira apropriada. A idéia básica é que quando os textos bíblicos são lidos em termos de seu significado literal, eles devem ser lidos de acordo com todas as regras e normas adequadas.
Para o dispensacionalismo começar com um comprometimento com a leitura "literal, normal e simples de um texto", é inteiramente necessário que ele levante a questão a respeito de qual é o sentido. Dizer que o significado literal das promessas e profecias bíblicas deve ser sempre o mais simples, concreto e óbvio, é antecipar o significado destes textos antes de realmente lê-los "segundo a letra", isto é, de acordo com as regras que se obtêm do tipo de linguagem que está sendo utilizada.
Tem sido comum desde a Reforma Protestante falar de uma leitura gramático-histórica dos textos bíblicos. Este método trata seriamente as palavras, frases, sintaxe e o contexto - portanto, gramatical - e também toma o ambiente e o momento históricos dos textos em cuidadosa consideração - portanto, histórico.
Este método foi colocado contra a abordagem medieval comum dos textos bíblicos que distinguia, em adição ao significado literal ou histórico de um texto, três outros níveis de significado: o sentido tropológico (moral), o alegórico, e o anagógico (final ou escatológico). [08] Contra esse sentido medieval quádruplo dos textos bíblicos, os reformadores falaram do sensus literalis, o sentido literal do texto. Isto significa que um texto deve ser lido de acordo com as regras de linguagem e gramática, bem como circunstâncias históricas pertinentes, a fim de descobrir o seu (único) significado literal. [09]
Isso demonstra, em princípio, a ilegitimidade do entendimento dispensacionalista ao defender seu envolvimento com uma hermenêutica literal. Mas porque esta é uma questão importante, vamos ilustrá-la de forma mais concreta por meio de três áreas problemáticas: primeiro, a relação entre a profecia ou promessa do Antigo Testamento e seu cumprimento neotestamentário; segundo, o tema da tipologia bíblica; e terceiro, a afirmação tantas vezes repetida de que os não-dispensacionalistas espiritualizam de maneira ilegítima as promessas bíblicas relativas à nova terra. Cada uma destas áreas problemáticas mostra quão inviável e inútil é dizer que uma leitura literal procura o sentido normal ou claro dos textos bíblicos.

3 - Profecia e cumprimento.

A primeira área problemática é o tratamento dispensacionalista das profecias veterotestamentárias e seu cumprimento. Aqui, a insistência sobre uma leitura literal dos textos bíblicos, especialmente as profecias, na verdade mascara a afirmação mais básica de que somente promessas terrenas ou não-espirituais podem ser feitas a um povo terreno. Porque as promessas feitas a Israel são sempre e necessariamente terrenas e literais, elas não podem ser aplicadas diretamente à Igreja. O dispensacionalismo entraria em colapso, como um método de leitura de profecias bíblicas, se fosse mostrado que as promessas feitas a Israel na antiga aliança encontram seu verdadeiro e final cumprimento na Igreja da nova aliança.
O problema aqui é que o N.T. aplica repetidamente à Igreja as profecias e promessas do A.T. feitas a Israel. Independente de quais podem ter sido os cumprimentos anteriores da profecia veterotestamentária, eles chegaram à sua realização final em Cristo, em que todas a promessas de Deus têm o seu "sim" e o seu "amém" (2ªCo 1:20). Isso pode ser ilustrado com vários exemplos.
Entre as promessas mais básicas de toda a Escritura está aquela que foi feita pelo Senhor à Abraão, que "e em ti serão benditas todas as famílias da terra" (Gn 12:3). Esta promessa é repetida em Gênesis 15, quando à Abraão é prometido descendentes tão numerosos quanto as estrelas do céu (v. 5), e então, em Gênesis 17, onde é prometido à Abraão uma semente e lhe é dito que seria o pai de muitas nações (v. 4). No relato do Novo Testamento sobre o cumprimento dessa promessa, especialmente no tratamento que o Apóstolo Paulo faz dela em Gálatas 3 e 4, está expressamente declarado que ela foi cumprida em Cristo. Não somente Cristo é a semente da promessa, Aquele em quem as promessas feitas à Abraão são cumpridas, mas todos os que pertencem a Cristo, seja judeu ou gentio, também são descendência de Abraão. Ao reunir, por meio do evangelho, crentes de toda tribo, língua, povo e nação, a promessa do Senhor à Abraão é literalmente cumprida. No entanto, a visão dispensacionalista é que esta pode ser, na melhor das hipóteses, somente uma aplicação secundária e não o cumprimento literal da promessa ao Israel terreno. Este ponto de vista contradiz o ensino do Apóstolo Paulo de que todos os crentes judeus e gentios são descendentes de Abraão e co-herdeiros da promessa. [10]
Similarmente, as promessas feitas durante a antiga aliança com o rei Davi encontram sua realização na vinda e reinado de Jesus Cristo, Filho de Davi e seu Senhor. No anúncio do nascimento de Jesus através do anjo à virgem Maria, o anjo diz à ela:
"E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e pôr-lhe-ás o nome de Jesus. Este será grande, e será chamado filho do Altíssimo; e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; E reinará eternamente na casa de Jacó, e o seu reino não terá fim." (Lucas 1:31-33)
Esta passagem, quando lida literalmente, diz que a criança que nascerá é o cumprimento da promessa do Senhor em 2º Samuel 7:13-16 (cf. Sl 89:26,27), a promessa de que o Filho de Davi estaria para sempre sentado sobre o trono de seu pai Davi. No entanto, o dispensacionalismo em sua forma clássica ensina que o reino davídico é um reino exclusivamente terreno, um reino reservado para o período do milênio (mil anos) e para o povo terreno de Deus, Israel. Não só esse entendimento falha no teste de ser uma leitura literal das descrições bíblicas da promessa de um reino davídico (mil anos não é para sempre), como também parece muito menos com uma leitura simples do texto do que a normalmente adotada por intérpretes não-dispensacionalistas - que a vinda de Cristo é o início do cumprimento da promessa feita anteriormente à Davi.
Uma outra promessa que ilustra o problema do tratamento dispensacionalista da profecia bíblica é a que se refere à restauração do templo. Ezequiel 40-48 descreve minuciosamente a futura reconstrução do templo após à restauração de Israel do seu cativeiro. Esta descrição fala em detalhes das dimensões deste templo reconstruído, bem como da variedade dos sacrifícios que serão oferecidos no mesmo, incluindo ofertas pelo pecado. Na leitura dispensacionalista da profecia, esta refere-se à reconstrução literal do templo em Jerusalém durante o reino milenar. No entanto, isso cria um problema de como interpretar à linguagem que descreve a reinstituição do sistema de sacrifícios, sobretudo depois da vinda de Cristo e da realização da redenção através do seu sacrifício na cruz que foi feito de uma vez por todas. Na Nova Bíblia de Referência Scofield, é admitido que essa linguagem não precisa ser tomada literalmente:
"A referência aos sacrifícios não é para ser tomada literalmente, tendo em vista o encerramento de tais ofertas, mas deve ser considerado como uma apresentação da adoração do Israel redimido, em sua própria terra e no templo milenar, usando os termos com os quais os judeus estavam familiarizados nos dias de Ezequiel." [11]
A admissão de que alguns elementos da profecia de Ezequiel à respeito do templo reconstruído não precisa ser tomada literalmente é fatal, entretanto, para as reivindicações feitas pelos dispensacionalistas de uma leitura literal da profecia. A mesma razão que leva o dispensacionalista a fazer uma leitura da linguagem sobre sacrifícios nesta passagem de uma forma não-literal - porque isso entraria em conflito com outras porções das Escrituras - bem poderia igualmente se aplicar à outros aspectos da profecia. De fato, a Palavra de Deus indica o cumprimento desta profecia, mas não no sentido literal de um templo reconstruído em Jerusalém durante o período do milênio. [12]
Estes são apenas alguns exemplos da maneira como os dispensacionalistas falham em reconhecer o cumprimento de muitas profecias do Velho Testamento para Israel na vinda de Cristo e na sua Igreja durante a presente era. Ao invés de permitir à compreensão do Novo Testamento do cumprimento da profecia determinar seu ponto de vista, o dispensacionalismo opera a partir do crença de que nenhuma promessa para Israel poderia, no sentido estrito do termo, jamais ser cumprida literalmente em conexão com a Igreja. Mas este é um preconceito baseado em uma dicotomia anti-bíblica entre Israel e a Igreja.

4 - Tipologia bíblica como calcanhar de Aquiles?

Uma segunda área problemática, a interpretação dos tipos bíblicos e sombras, é de certa forma o calcanhar de Aquiles da hermenêutica literal dispensacionalista. [13] "Tipos bíblicos" pode ser definido rapidamente como aqueles eventos, pessoas, ou instituições no Antigo Testamento, que prefiguram ou prenunciam suas realidades no Novo Testamento. [14] Nos casos de tais tipos bíblicos, o tipo do A.T. é cumprido no seu significado típico e simbólico pela realidade neotestamentária. Assim, se puder ser mostrado que muitos dos eventos históricos, pessoas, e instituições que integraram a administração do Senhor do pacto da graça no Antigo Testamento, prenunciou eventos, pessoas e instituições em sua realidade cumprida na nova aliança, o dispensacionalismo, como um método de interpretação bíblico, pode estar sendo seriamente ameaçado.
Embora muitos exemplos de tipos bíblicos pudessem ser citados, três são especialmente problemáticos para o dispensacionalismo: o templo, Jerusalém, e os sacrifícios.
Comecemos com a tipologia do templo, porque é com isso que concluímos a seção anterior sobre profecia. No ensino das Escrituras, o templo (anteriormente, o tabernáculo) do Senhor é o lugar da sua habitação peculiar no meio do seu povo. O templo era o ponto central para a adoração de Israel, o lugar onde o povo de Senhor podia se aproximar de Deus, uma vez que seus pecados foram expiados por meio dos sacrifícios instituídos pela lei. Falando da importância do tabernáculo no Antigo Testamento, Geerhardus Vos, em sua Teologia Bíblica, observa:
"O tabernáculo proporciona um exemplo claro da coexistência do simbólico e do típico em uma das principais instituições da religião do Antigo Testamento. Ele encarna a idéia eminentemente religiosa da morada de Deus com Seu povo. Ele expressa simbolicamente com o que o estado da religião do A.T. está preocupado, e geralmente o é com respeito a encarnação final da salvação no estado cristão... Que seu propósito principal é compreender a habitação de Jeová está afirmado em muitos textos (Êxodo 25:8; 29:44,45)." [15]
Em seu significado típico, o templo era uma sombra ou tipo da realidade da habitação do Senhor com seu povo. De acordo com o Novo Testamento, esta realidade agora é encontrada em Cristo (Jo 1:14; 2:19-22; Cl 2:9) e na Igreja como sendo o lugar da habitação de Deus pelo Espírito (Ef 2:21-22; 1ªTm 3:15; Hb 3:6; 10:21; 1ªPe 2:5). Cristo e a Igreja são o cumprimento do significado típico e simbólico do templo. Além disso, no estado final da consumação, quando o Senhor habitar para sempre na presença de seu povo nos novos céus e terra, é expressamente ensinado que não haverá mais qualquer templo para o Senhor habitar no meio deles (Ap 21:22).
A insistência dispensacionalista de que o templo é uma instituição que pertence, em sua forma literal, particularmente a Israel, falha em apreciar o significado típico na revelação bíblica. A idéia de que o templo seria literalmente reconstruído para servir de ponto principal para a adoração de Israel durante o período do milênio, representa, do ponto de vista do progresso e desdobramento da revelação bíblica, uma reversão aos tipos e sombras veterotestamentários. Logo, o dispensacionalismo está no sentido anti-horário da história da redenção.
Um equívoco semelhante da tipologia bíblica também caracteriza o tratamento dispensacionalista de "Jerusalém", ou "Sião". No Antigo Testamento, Jerusalém, ou Sião, é a cidade de Davi, o rei teocrático, e simboliza o governo do Senhor no meio do seu povo. Jerusalém é a cidade do ungido do Senhor, o lugar do seu trono e gracioso governo entre o seu povo. É a "cidade de Deus" (Sl 46), o lugar onde as crianças são concebidas e nascidas para o Senhor (Sl 87). É a cidade para a qual as nações, as quais o Senhor prometeu dar ao Filho de Davi como sua legítima herança (Sl 2), virão.
Contudo, no Novo Testamento, somos ensinados que Jerusalém é agora a "Jerusalém celeste". Por esta razão, o escritor aos Hebreus é capaz de dizer aos crentes da nova aliança:
"Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; A universal assembléia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus [...]" (12:22-23).
Esta é também a razão pela qual o Apóstolo João pode relatar a seguinte visão da Jerusalém celeste como ela será no final da história da redenção:
"E vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus." (Ap 21:1-3)
Esses tipos de passagens descrevem para nós o cumprimento de tudo o que a Jerusalém da antiga aliança tipificava e prenunciava. Elas confirmam o padrão de tipologia bíblica: a Jerusalém literal da antiga aliança é típica da cidade de Deus na nova aliança, a Igreja. A habitação do Senhor no meio do seu povo, a presença do santuário do templo, o trono de Davi - todos estes encontram o seu cumprimento e realidade na bênção da nova aliança e na consumação testemunhada pelo Apóstolo João em sua visão na ilha de Patmos.
Um exemplo ainda mais intimamente ligado à tipologia bíblica é o dos sacrifícios estipulados na lei de Moisés, especialmente no livro de Levítico. Esses sacrifícios eram símbolos e tipos da pessoa e obra de Jesus Cristo, o sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, que cumpriu e aperfeiçoou tudo o que eles prenunciavam. Este é o argumento principal da carta aos Hebreus, que compara e contrasta o tabernáculo da antiga aliança, o sacerdócio e os sacrifícios com seu cumprimento e perfeição em Cristo. Os tipos e sombras da antiga aliança foram abolidos, ou melhor, encontram a sua realidade e perfeição nas realidades da nova aliança.
"Ora, a suma do que temos dito é que temos um sumo sacerdote tal, que está assentado nos céus à destra do trono da majestade, ministro do santuário, e do verdadeiro tabernáculo, o qual o Senhor fundou, e não o homem. Porque todo o sumo sacerdote é constituído para oferecer dons e sacrifícios; por isso era necessário que este também tivesse alguma coisa que oferecer. Ora, se ele estivesse na terra, nem tampouco sacerdote seria, havendo ainda sacerdotes que oferecem dons segundo a lei, os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais [...] Mas agora alcançou ele ministério tanto mais excelente, quanto é mediador de uma melhor aliança que está confirmada em melhores promessas. [...] Dizendo Nova aliança, envelheceu a primeira. Ora, o que foi tornado velho, e se envelhece, perto está de acabar." (Hebreus 8:1-6,13)
O ponto resumido nesta passagem e exibido nos exemplos anteriores de tipos bíblicos constitui o que está sendo chamado de o calcanhar de Aquiles da reivindicação dispensacionalista de uma hermenêutica literal. Não só esta afirmação não faz justiça ao ensino do Novo Testamento sobre o cumprimento da profecia do Antigo Testamento, mas também milita contra a alegação feita pelos autores inspirados neotestamentários à respeito da importância tipológica do santuário, sacerdócio e sacrifício do A.T., a saber: a realidade da nova aliança torna a sombra obsoleta e supérflua. Uma vez que este princípio é admitido, a insistência dispensacionalista sobre uma reinstituição literal dos tipos e sombras da antiga aliança parece estar em sério conflito com o ensino da tipologia bíblica.

5 - O que dizer da espiritualização?

A terceira área problemática que resta ser considerada é a alegação dispensacionalista de que um cumprimento não literal das profecias e promessas bíblicas para Israel denuncia uma espiritualização que não pode fazer justiça aos textos bíblicos. De acordo com o dispensacionalismo, muitas promessas para Israel não podem ser contabilizadas a menos que sejam entendidas como sendo cumpridas literal e concretamente durante o período do milênio por vir.
Entre tais profecias, dispensacionalistas muitas vezes citam passagens como Isaías 11:6-10 e 65:17-25. Ambas as profecias são tratadas na Bíblia de Referência Scofield como previsões do milênio, o período de mil anos do reinado literal de Cristo sobre a terra em Jerusalém. Este reino milenar representa a retomada da relação especial de Deus com seu povo terreno, Israel, depois do tempo dos gentios, o período da Igreja conhecido como "parênteses", finalizado com o arrebatamento seguido de sete anos de tribulação. Segundo o dispensacionalismo, estes textos são uma prova convincente de que as profecias do Senhor para Israel podem ter somente um cumprimento literal e concreto. A linguagem usada em ambas as passagens, conforme o dispensacionalista, só pode ser entendida como referindo-se a um milênio literal ou reino Davídico sobre a terra.
Porém, uma inspeção mais atenta dessas duas profecias não suportam tal afirmação. Em Isaías 11:6-10, o profeta descreve uma bela imagem do reinado do rebento de Jessé. Este reinado será caracterizado pela paz e tranqüilidade universal. Neste reino, o Senhor declara que "morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará [...]Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do SENHOR, como as águas cobrem o mar" (v. 6 e 9).
Não está evidente que o texto descreve o milênio conforme a esperança dispensacionalista. Nenhuma menção é feita como este sendo um período limitado no tempo, talvez com mil anos de duração. Mais importante ainda, esta passagem fala de um reino caracterizado por uma paz universal e pelo conhecimento do Senhor. O milênio da esperança dispensacionalista, em contraste, inclui a presença de algumas pessoas que não reconhecem o Senhor, e até mesmo uma rebelião substancial contra Ele por parte de muitos no final desse período - o "pouco tempo" de Satanás. A descrição de Isaías 11:6-10, portanto, pode melhor referir-se ao estado final dos "novos céus e nova terra" do que ao milênio. Embora esta linguagem é legitimamente tomada para descrever as circunstâncias sobre a terra - e não para ser espiritualizada em um sentido não-terreno -, ela descreve melhor a paz universal e o conhecimento do Senhor que caracterizará o estado final na consumação do que o terreno reinado Davídico da esperança dispensacionalista.
A segunda dessas profecias, Isaías 65:17-25, é um pouco mais difícil de interpretar. Na Nova Bíblia de Referência Scofield, o primeiro verso, que fala dos novos céus e nova terra, é tomado como uma descrição do estado final, mas os versos restantes (18-25) são tomados como uma descrição do milênio. [16] Assim, esta passagem é considerada como sendo uma descrição tanto do estado final como do milênio que irá precedê-lo. Esta leitura tem alguma plausibilidade, porque o versículo 20 descreve um tempo em que as crianças não serão cortadas depois de terem vivido apenas alguns dias, e quando os que são mais velhos não morrerão prematuramente. Este verso declara expressamente que " o menino morrerá de cem anos; porém o pecador de cem anos será amaldiçoado". Porque a morte é mencionada nestes versos, os dispensacionalistas argumentam que eles não podem se referir ao estado final.
Embora esta seja uma passagem difícil, pode muito bem ser o caso de que, nesta descrição profética dos novos céus e nova terra, esta linguagem está sendo usada para descreve o estado final. Se a linguagem é forçada literalmente, pode parecer estar em conflito com o ensino bíblico de que não haverá mais morte nos novos céus e nova terra. Mas talvez a linguagem utilizada é simplesmente uma maneira de afirmar figurativamente ou poeticamente a vida incalculavelmente longa que os habitantes da nova terra terão. [17] Deve-se observar que estes versos também falam da vida dos habitantes sendo longa "como os dias da árvore" (v. 22), sugerindo uma extraordinária longevidade de vida. Talvez mais significativamente, estes versículos dizem que "nem pranto, nem clamor" serão ouvidos em Jerusalém, sendo esta a linguagem usada em Apocalipse 21:4 para designar o estado final. A mais provável leitura desses versos, portanto, é que eles, desde o versículo 17 até o 25, descrevem na linguagem da experiência presente algo sobre alegria, bem-aventurança, e vida eterna que serão as circunstâncias do povo de Deus nos novos céus e nova terra. [18]
Em outras palavras, esses e outros textos similares têm um lugar apropriado dentro de uma leitura não-dispensacionalista da Bíblia. Simplesmente não é o caso de que todos os não-dispensacionalistas espiritualizam essas profecias e falham em tomar seriamente sua descrição da vida renovada na nova terra. Não precisa ser um dispensacionalista para fazer justiça à linguagem terrena e concreta utilizada nessas profecias dos novos céus e nova terra. Desde que fique entendido que o estado final requer um novo céu e uma nova terra, a riqueza e a solidez do imaginário nestas passagens bíblicas podem ser apreciadas. De fato, à partir de uma perspectiva, até poderia ser argumentado que, na medida em que o milênio dispensacionalista fica aquém da bem-aventurança da vida na nova terra descrita nestas passagens, o dispensacionalismo torna-se mais culpado de espiritualizar sua linguagem e significado. Contanto que os não-dispensacionalistas insistem na restauração da terra no estado final, eles não precisam ceder a menor acusação de que eles têm ilegitimamente espiritualizado as profecias das Escrituras à respeito do estado final.

Conclusão.

A alegação dispensacionalista sobre uma interpretação literal das Escrituras é realmente o produto de sua insistência em uma separação radical entre Israel, o povo terreno de Deus, e a Igreja, o povo espiritual de Deus. Sem este pressuposto alicerçado - de que Deus tem dois povos distintos - não há razão para negar o cumprimento das promessas da antiga aliança nas realidades da nova aliança. Nem há qualquer razão maior para evitar as implicações da tipologia bíblica para o sistema dispensacionalista.
Talvez a evidência mais reveladora contra a hermenêutica dispensacionalista é encontrada no livro de Hebreus. A mensagem do livro de Hebreus é, se posso falar anacronicamente, uma refutação convincente do dispensacionalismo. Considerando que o livro de Hebreus é um argumento sustentado para a finalidade, riqueza e realização de todas as palavras e obras da aliança do Senhor na nova aliança que está em Cristo, o dispensacionalismo quer preservar intacto o regime anterior para Israel, regime que será reinstituído no período do reino milenar. Contudo, isso seria o mesmo que voltar ao que foi ultrapassado pela nova aliança em Cristo, revertendo aos arranjos que foram tornados obsoletos e supérfluos por conta da sua realidade que tem sido realizada nas provisões da nova aliança. O Mediador desta nova aliança, Cristo, é o cumprimento de todas as promessas do Senhor para seu povo. Assim, para o escritor aos Hebreus, qualquer reversão para os tipos e cerimônias da antiga aliança, por uma preferência de suas sombras, seria uma renúncia inaceitável das realidades da nova aliança.
Embora possa parecer demasiado severo para alguns, nenhum outro julgamento nos é permitido com respeito ao sistema de interpretação bíblica conhecido como dispensacionalismo: ele representa um apego contínuo às sombras e cerimônias da dispensação da antiga aliança, e também falha em apreciar apropriadamente a finalidade da nova aliança. Sua doutrina de uma hermenêutica literal prova não ser literal, no sentido próprio do termo. Ao invés de ler o Novo Testamento "segundo a letra", o dispensacionalismo lê o N.T. através da lente de sua insistência em uma separação radical entre Israel e a Igreja.

Concluído.

Traduzido por Mac.

Veja também este artigo original em inglês: http://www.the-highway.com/premil4_Venema.html

[01] Aqui e em toda esta seção eu estou usando o termo “hermenêutica” no sentido básico de um método ou abordagem para a leitura da Bíblia. O dispensacionalismo é caracterizado por uma hermenêutica particular, ou forma (seguindo certas regras ou princípios) de ler os textos bíblicos, especialmente um que enfatiza o princípio de uma leitura literal.
[02] Ver, por exemplo, Ryrie, Dispensacionalismo Hoje, p. 86-109, 132-55.
[03] Cyrus I. Scofield, Escola Bíblica por Correspondência Scofield, Curso de Estudo (7ª ed., 3 vols., não disponível por uma editora), p. 45-46 (como citado por Vern S. Poythress, Entendendo os Dispensacionalistas [Grand Rapids: Zondervan, 1987], p. 24).
[04] Chicago: Moody, 1965.
[05] Winona Lake, Indiana: BMH Books, 1974.
[06] Dispensacionalismo Hoje, p. 86.
[07] A Interpretação da Profecia, p. 29.
[08] Com base neste sentido quádruplo dos textos bíblicos, uma referência à água pode significar, literalmente, um líquido incolor; moralmente, a necessidade de pureza; alegoricamente, batismo por água; e anagogicamente, a vida eterna na Jerusalém celeste. Ou, para usar outro exemplo comum, Jerusalém pode significar literalmente, a cidade na Palestina; moralmente, a necessidade de uma mentalidade celestial; alegoricamente, a cidadania no céu; e anagogicamente, a Jerusalém dos novos céus e nova terra.
[09] Falando contra este ensinamento medieval de um sentido quádruplo, a Confissão de Fé de Westminster, capítulo 1.9, afirma que “o sentido pleno e verdadeiro de qualquer texto da Escritura... não é múltiplo, mas um”.
[10] Na seção anterior, ao lidar com a relação entre Israel e a Igreja, o argumento oferecido para rejeitar qualquer separação clara entre eles é estreitamente relacionado com este entendimento bíblico do cumprimento das promessas feitas a Israel na nova aliança.
[11] A Nova Bíblia de Referência Scofield, nota em Ezequiel 43:19. Esta nota representa uma mudança a partir da Bíblia de Referência Scofield original, que diz: “Sem dúvida, essas ofertas serão memorial, olhando para trás até a cruz, como as ofertas sob a antiga aliança foram antecipatórias, olhando para frente até a cruz. Em nenhum desses casos o sacrifício de animais tem poder para remover os pecados (Hb 10:4, Rm 3:25)”.
[12] A alegação dispensacionalista de que o templo será reconstruído em Jerusalém durante o milênio apresenta uma série de problemas: primeiro, mesmo que os sacrifícios não sejam reinstituídos, ou que o sejam apenas oferecidos memorialmente, Cristo não poderia ministrar no templo porque Ele não é um sacerdote “segundo a ordem de Levi” (cf. Hb 7:14); segundo, Ezequiel nada diz sobre a reconstrução do templo durante o período conhecido como o milênio; e terceiro, a profecia de reconstrução do templo é uma profecia da habitação do Senhor no meio do seu povo conforme descrito em Apocalipse 22. O dispensacionalismo interpreta equivocadamente esta profecia porque ele tem uma visão inadequada das sombras e tipos bíblicos em relação ao seu cumprimento, um assunto ao qual falarei adiante.
[13] Para uma avaliação crítica da manipulação dispensacionalista da tipologia bíblica, ver Poythress, Entendendo o Dispensacionalismo, p. 111-17.
[14] T. Norton Street, Como Entender Sua Bíblia, ed. rev. (Downers Grove, Ilinois: InterVarsity, 1974), p. 107, dá a seguinte definição útil de um tipo bíblico: “Um tipo bíblico pode ser definido como um propósito divino, um prenúncio veterotestamentário de uma realidade espiritual do Novo Testamento.”
[15] Grand Rapids: Eerdmans, 1948 (e edição britânica, Edinburgh: Banner of Truth, 1975), p. 148.
[16] Nestes versículos é dado o título, “Condições milenares na terra renovada com a maldição removida” (Nova Bíblia de Referência Scofield).
[17] Esta linguagem e sugestão é de Anthony Hoekema (A Bíblia e o Futuro, 1979, p. 202).
[18] Alguns pós-milenistas considerariam a descrição desses versos como referindo-se ao milênio, a era de ouro que precederá o retorno de Cristo e o estado final. Ver, por exemplo, Davis, Reino Vitorioso de Cristo, p. 37-8. Embora esta visão não inclua a compreensão dispensacionalista de um reino reservado ao povo terreno de Deus, Israel, ela considera essa passagem como descrevendo um período cuja as bênçãos estão aquém da perfeição do estado final.

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