Importante: O texto a seguir é de autoria de Anthony A. Hoekema (1913/1988), teólogo cristão que atuou como professor de Teologia Sistemática no Calvin Theological Seminary por vinte e um anos.(5)
Esta tensão nos ajuda a entender o papel do sofrimento na vida dos crentes. “Por que sofre o justo?” é uma questão tão velha quanto o livro de Jó. Uma resposta a esta questão é que o sofrimento, na vida dos crentes, é uma manifestação concreta do
ainda-não. O sofrimento ainda acontece na vida de cristãos porque ainda não foram eliminados todos os resultados do pecado. O Novo Testamento ensina que “através de muitas tribulações, nos importa entrar no Reino de Deus” (At 14:22). Paulo conecta nosso sofrimento presente com nossa glória futura (Rm 8:17,18). E Pedro aconselha seus leitores a não se surpreender “com o julgamento penoso que estais sofrendo como se algo estranho estivesse acontecendo a vós” mas antes “alegrai-vos em participar dos sofrimentos de Cristo” (1ª Pe 4:12, 13, NVI).
O episódio das almas debaixo do altar, em Apocalipse (6:9-11), também nos ajuda a entender o problema do sofrimento na vida dos crentes. João ouve as almas daqueles que foram mortos por causa da palavra de Deus, clamando:
“Ó Soberano Senhor [...] até quando não julgas nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?” (v. 10)
A pergunta sobre porque Deus permite injustiças tão terríveis acontecerem sobre a terra, requer uma resposta. E a resposta é dada em dois estágios. Primeiro, àqueles que clamavam foram dadas vestiduras brancas - um símbolo óbvio de vitória. Depois, é-lhes dito para descansar um pouco mais, até que o número de seus conservos, que deveriam ser mortos, seja completado (v. 11). Assim, o povo de Deus continuará a sofrer injustiça até o fim desta era - contudo, aqueles que sofrem e morrem por causa de Cristo receberão suas vestiduras brancas da vitória.
Por causa disso, temos de ver o sofrimento dos crentes à luz do
eschaton, ocasião em que Deus enxugará todas as lágrimas dos nossos olhos e quando não mais haverá sofrimento e morte (Ap 21:4). Entrementes, sabemos que Deus tem seus propósitos para permitir a entrada do sofrimento na vida de seu povo. Paulo nos ensina, em Romanos 5, que o sofrimento produz perseverança, a perseverança produz caráter e o caráter produz esperança (vs. 3,4). E o autor de Hebreus, embora admitindo que a disciplina e o sofrimento não parecem ser agradáveis na hora em que são experimentados, nos conta que tal disciplina mais tarde “produz uma colheita de justiça e paz para aqueles que por ela foram treinados” (12:11, NVI)
[8].
(6)
Nossa atitude para com a cultura está relacionada com esta tensão. H. Richard Niebuhr em seu livro
Christ and Culture (Cristo e a Cultura)
[9], aponta várias abordagens para com a cultura que foram utilizadas por diversos grupos cristãos no passado, variando desde rejeição total até aceitação acrítica da produção cultural de não-cristãos, com numerosas posições intermediárias. Aplicando o conceito da tensão
já-ainda-não à questão das conquistas culturas, tanto de crentes como de descrentes, ajudaremos a lança alguma luz sobre este eterno problema.
É geralmente entendido, por muitos cristãos, que o relacionamento entre o mundo presente e a nova terra que está porvir é de descontinuidade absoluta. A nova terra, pensam muitos, cairá como uma bomba em nosso meio. Não haverá nenhum tipo de continuidade entre este mundo e o vindouro; tudo será totalmente diferente.
Esta compreensão, porém, não faz jus ao ensino das Escrituras. Há tanto continuidade como descontinuidade entre este mundo e o vindouro
[10]. O princípio aqui envolvido está bem expresso em palavras que foram freqüentemente usadas por teólogos medievais: “A graça não destrói a natureza mas a restaura”
[11]. Em sua atividade redentora, Deus não destrói as obras de suas mãos mas as limpa do pecado e as aperfeiçoa, a fim de que possam finalmente alcançar o alvo para o qual ele as criou. Aplicado a este problema, esse princípio significa que a nova terra que aguardamos não será totalmente diferente da terra atual, mas será uma renovação e glorificação da terra na qual vivemos agora.
Já observamos, anteriormente, figuras neotestamentárias que sugerem que aquilo que os crentes fazem nesta vida terá conseqüências na vida porvir - figuras como as da semeadura e ceifa, grão e espiga, amadurecimento e colheita. Paulo ensina que uma pessoa pode construir sobre a fundação da fé em Cristo, com materiais duráveis como ouro, prata ou pedras preciosas, de modo que na consumação sua obra possa sobreviver e ele possa receber uma recompensa (1ª Co 3:10-15). O livro do Apocalipse fala acerca das obras que seguirão aqueles que morreram no Senhor (14:13). Fica claro, de passagens como esta, que aquilo que os cristãos fazem para o Reino de Deus nesta vida tem significado também para o mundo porvir. Em outras palavras, há uma continuidade entre o que é feito para Cristo agora e o que deveremos desfrutar no futuro - uma continuidade expressa no Novo Testamento em termos de galardão ou gozo (1ª Co 3:14; Mt 25:21,23).
Mas, que dizer acerca da produção cultural dos não-cristãos? Devemos simplesmente renegar tais produtos como sem valor porque não foram produzidos por crentes e não foram conscientemente dedicados à glória de Deus? Os cristãos que tomam esta atitude, falham em apreciar a obra da graça geral de Deus no mundo atual, através da qual mesmo homens não-regenerados são capacitados para fazer contribuições válidas para a cultura mundial.
“Toda verdade é de Deus; consequentemente, se homens iníquos disseram qualquer coisa que seja verdadeira e justa, não devemos rejeitá-la; porque ela veio de Deus [12]. Sempre que depararmos com estes assuntos em escritores seculares, deixemos essa admirável luz da verdade que neles brilha nos ensinar que a mente do homem, embora decaída e pervertida em sua inteireza está mesmo assim vestida e ornamentada com os excelentes dons de Deus. Se consideramos o Espírito de Deus como a única fonte da verdade, nunca devemos rejeitar a verdade em si, nem menosprezá-la pareça como for, a não ser que desejemos desonrar o Espírito de Deus. Porque, em tendo os dons do Espírito em pouca estima, desprezamos e rejeitamos o próprio Espírito” [13].
Com relação à cultura não-cristã, portanto, temos de lembrar que o soberano poder de Cristo é tão grande que ele pode governar em meio a seus inimigos, e fazer com que aqueles que não o conhecem façam contribuições à ciência e à arte, contribuições que servirão à sua causa. Os poderes despertos pela ressurreição de Jesus Cristo estão ativos no mundo de hoje! O governo soberano de Cristo sobre a história é tão maravilhosos que ele pode fazer até seus inimigos louvá-lo, embora eles o façam involuntariamente. E quando lemos, no livro do Apocalipse, que os reis das nações da terra deverão trazer sua glória para a nova Jerusalém (21:24,26), concluímos que haverá alguma continuidade até entre a cultura do mundo atual e a do mundo vindouro.
A tensão entre o
já e o
ainda-não, portanto, implica em que não devemos desprezar o que o Espírito de Deus capacitou a homens nãoregenerados produzirem, mas devemos avaliar todos esses produtos culturais à luz dos ensinos da Palavra de Deus. Podemos usar em gratidão qualquer coisa de valor da cultura deste mundo, desde que a usemos com discriminação.
Como cristãos, acima de tudo, temos de fazer o que melhor podemos para continuar a produzir uma cultura genuinamente cristã: literatura cristã, arte, filosofia, uma abordagem cristã da ciência, e assim por diante. Mas não devemos esperar alcançar uma cultura totalmente cristã deste lado do
eschaton. Uma vez que ainda não somos o que devemos ser, todos os nossos esforços em estabelecer uma cultura cristã serão apenas uma aproximação. Para dar certeza, embora haja uma continuidade entre o mundo presente e o mundo por vir, a glória do mundo vindouro superará em muito a glória do mundo presente. Porque:
"Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam." (1 Co 2:9 NVI)
Resumindo o que foi desenvolvido neste capítulo, concluímos que toda a nossa vida cristã deve ser vivida à luz da tensão entre o que já somos em Cristo e o que um dia esperamos ser. Olhamos, no passado, com gratidão, para a obra concluída e a vitória decisiva de Jesus Cristo. E olhamos para o futuro com ansiosa antecipação da Segunda Vinda de Cristo, quando instauraremos a fase final de seu Reino glorioso, e traremos à plenitude a boa obra que ele começou em nós
[14].
Chegamos ao final da série de estudos sobre a tensão entre o "já" e o "ainda não" pelo ponto de vista amilenista, por Anthony A. Hoekema.[8] Sobre o assunto do sofrimento e martírio na vida dos crentes, veja Berkouwer, Return, pp. 115-122.[9] Nova York: Harper, 1951.
[10] Para um maior desenvolvimento desse pensamento, e de sua relação com o problema do tempo e da eternidade, veja Berkof, Meaning, pp 180-193.[11] “Gratia non tollit sed reparat naturam”.[12] Commentary on the Epistles to Timothy, Titus, and Philemon (Comentário das Epístolas a Timóteo, Tito e Filemon), transcr W. Pringle, Grand Rapids: Eerdmans, 1948, de Tito 1.12, pp. 300, 301.[13] Institutas, ed., J. T. McNeill trasncr., F.L.Battles, Phidadelphia: Westminster, 1960) II, 2, 15.[14] Para uma discussão mais ampliada da tensão do “já-ainda-não”, veja Berkouwer, Return, pp.20-23, 110-115, 121, 122, 138, 139; Cullmann, Salvation, pp. 32, 172-185; Hamilton, The Holy Spirit and Eschatology in Paul (O Espírito Santo e a Escatologia em Paulo), pp. 39, 87; W. Manson, “Eschatology in the New Testament” (A Escatologia em o Novo Testamento), pp. 7, 9-13; Ridderbos, Paul, pp. 230, 231, 249-252, 267-277; Shires, The Eschatology of Paul in the Light of Scholarship (A Escatologia de Paulo à luz da Erudição Moderna), pp.18, 162, 163, 169, 226.