sexta-feira, 6 de agosto de 2010

CAPÍTULO V - Interpretação da profecia do A.T.

...continuação.

Importante
: O texto a seguir é de autoria do Rev. William J. Grier (1868-19??).


Um profeta era cheio de autoridade e infalível ao ensinar a vontade de Deus. A idéia generalizada de ser o profeta alguém que predizia o futuro é incorreta. É verdade que fazia previsões de fatos ainda por acontecer mas isso, algumas vezes, constituía uma parte relativamente pequena do seu trabalho. O profeta falava como intérprete de Deus e no seu falar havia lições de verdade e deveres, de fé e esperança para o presente, interpretação do passado, bem como predição do futuro. Facilmente o comprovamos, quando estudamos os livros de Oséias, Jeremias, Ezequiel, ou qualquer outro dos profetas. Mas, no presente estudo, estamos considerando a palavra "profecia" na sua significação mais limitada, ou seja: predição do futuro.

No
capítulo II, observamos que os pós-milenistas, que esperam por um mundo convertido antes da vinda do Senhor (é justo assinalar que muitos "pós" não o fazem) não estão em terreno firme. Vimos, também, que a suposição dos pré-milenistas de que haverá um milênio de bém-aventurança terrena, após a vinda de Cristo, é totalmente excluída do Novo Testamento. Os defensores deste último ponto de vista (a saber, os pré-milenistas) sentem-se em posição muito forte, quando apelam para o Antigo Testamento. Por outro lado, o grande especialista no Antigo Testamento, Prof. Robert Dick Wilson, de Princeton, costumava dizer a alguns de seus alunos, entre os quais se contou o autor, que as profecias do Velho Testamento, em vez de favorecerem a crença dos pré-milenistas, são forte argumento contra ela.
Foi um estudo meticuloso das profecias do Velho Testamento, particularmente de algumas partes do livro de Ezequiel (junto com um repetido estudo das Escrituras do Novo Testamento sobre a segunda vinda), que forçou este autor a abandonar a crença pré-milenista.

Os pré-milenistas geralmente se apegam muito à letra, na interpretação da profecia do Antigo Testamento. E deduzem que o Senhor Jesus, visivelmente, em pessoa e em um trono em Jerusalém, reinará sobre o povo de Israel, restaurado na Palestina. Seu reino se estenderá sobre as nações gentias, com os judeus, entretanto, acima dos outros povos (Is 60:1-22). Acontecerá, porém, que a obediência das nações a Cristo será simulada. Durante aquele período, as pessoas, que terão corpos mortais, viverão em casas, comerão de vinhas, terão filhos, serão sujeitas a doenças e à morte, embora não tanto como agora (Is 65:20, 21). O templo será restaurado com as suas cerimônias e sacrifícios sangrentos como ofertas pelo pecado, para expiação das culpas do povo (Ez 45:17). Os sacerdotes do templo ensinarão ao povo a diferença entre as coisas limpas e as impuras (Ez 44:23). As tribos da terra subirão todos os anos a Jerusalém, para comemorar a festa dos tabernáculos. Cristo entrará no templo pelo portão oriental, enquanto os sacerdotes estarão preparando as Suas ofertas queimadas e as ofertas de paz (Ez 46:2). E de novo será praticada a circuncisão, sob o Seu reinado (Ez 44:9).

A própria profecia do Velho Testamento contém uma advertência contra tal literalismo. Deus disse que falaria aos profetas do Antigo Testamento em sonhos e visões e em palavras obscuras (Nm 12:6-8, Os 12:10). Assim, devemos estar preparados para a leitura de linguagem figurada e enigmática. Até a primeira profecia (Gn 3:15) está encoberta por uma forma velada e misteriosa. Emprega figuras de linguagem. Conforme disse Lutero:
"Compreende e abrange tudo o que há de nobre e glorioso nas Escrituras."
Fala de vitória sobre a serpente, usando do símbolo de se lhe esmagar a cabeça. Isaías fala da sua ruína, figurando-a como tendo pó por alimento e a criancinha pondo a mão na sua cova. João retrata Satanás (a mesma serpente) como ligado com uma corrente. Gênesis, Isaías e o Apocalipse dizem a mesma coisa e nos apresentam uma gloriosa verdade mediante o uso dessas imagens.
Existe outra profecia antiga, que diz:
"Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo." (Gn 9:27)
Quem habitará nas tendas de Sem? Deus ou Jafé? Se o texto se refere a Jafé, ele habitará nas "tendas de Sem" como conquistador, súdito ou amigo? E de quem será Canaã serva, de Jafé ou de Sem?
Em última análise, o habitar nas tendas de Sem se refere ao recebimento dos gentios, bem como dos judeus, ao aprisco do Senhor. A linguagem é figurada e um literalismo crasso desviaria completamente o intérprete.

Quando Ezequiel fala do povo regressando à sua própria terra, dá a perceber que não devemos interpretar essa restauração no seu sentido literal, pois diz:
"E meu servo Davi será rei sobre eles..." (Ez 37:24)
Se tomarmos o assunto literalmente, então Davi deverá ressuscitar dos mortos para apascentar toda a casa de Israel e sobre ela reinar - Davi, não Cristo. Não fica bem aos literalistas dizer que Davi, aqui, é o divino Davi, isto é, Cristo. Devem manter coerência no seu literalismo.
Qualquer pessoa que se der ao trabalho de estudar as medidas dadas por Ezequiel para o templo restaurado, e a cidade, e as divisões de terras entre as tribos, chegará à conclusão de que não se adaptam à Palestina, absolutamente. E, tomadas no seu sentido literal, envolverão a anomalia de água jorrando para cima. Não satisfaz o poder dizer-se, em resposta, que todas as coisas são possíveis a Deus. Em Sua Palavra, repetidamente, Ele nos conduz à crença em coisas que estão acima da razão, mas jamais em coisas contrárias à razão.

Nos capítulos 38 e 39, Ezequiel fala de Gogue, com todas as suas hordas e uma multidão subindo com ele contra Israel e cobrindo a terra como uma nuvem. É completamente derrotado. Israel leva sete anos para queimar a madeira de suas armas. Todos os Israelitas se empregam durante sete meses em enterrar os mortos. Tomando isso literalmente e fazendo-se um cálculo bastante modesto, deveria haver 360.000.000 de cadáveres. Pensemos, então, nos vapores pestilentos que emanariam de tal amontoado, no mau cheiro, sob o sol do oriente, enquanto tão grande número de mortos estivesse insepulto! Conforme diz o Dr. Patrick Fairbairn:
"Quem resistiria, quem poderia viver ali? Isso desafia todas as leis na natureza... Insistir em que tal descrição possa ser compreendida literalmente seria nivelá-la às fantasias mais extravagantes de novela ou às mais absurdas lendas do Papismo."
Os números "sete anos" e "sete meses" são, sem dúvida alguma, simbólicos; sete é o número da perfeição e o que se quer destacar no texto é a total, completa derrota da multidão dos inimigos do povo de Deus.
Quando Isaías nos diz:
"[...] se firmará o monte da casa do SENHOR no cume dos montes, e se elevará por cima dos outeiros [...]" (Is 2:2)
Uma interpretação literal levaria à suposição de que a colina do templo em Jerusalém será tornada mais alta que os picos do Himalaia. Todavia, a explicação é simples: a elevação já se verificou, há muito - quando Cristo apareceu em carne, e a glória do templo ao qual Ele veio cresceu de tal forma que toda a grandeza do mundo tornou-se insignificante, se a Ele comparada (Ag 2:9).

Os literalistas, muitas vezes, atribuem grande importância às assim ditas incondicionais promessas da terra a Israel, para sempre, e da restituição do trono à linhagem de Davi. Deveriam lembrar-se, no entanto, de que Deus disse a uma geração de Israel, com respeito à posse da terra:
"Não verão a terra de que a seus pais jurei." (Nm 14:23. Ver também 1Sm 2:30)
De fato, como diz Fairbairn, só se poderia esperar o cumprimento das promessas, se a Igreja (do Velho ou do Novo Testamento) fosse fiel ao seu chamado (Ver Jr 18:9,10). Se ocorresse o contrário, então Israel se tornaria em "príncipes de Sodoma e povo de Gomorra" (Is 1:10) e "filhos dos etíopes" (Am 9:7). Quanto à promessa de que não faltaria um homem de sua linhagem para se assentar no seu trono, Davi sabia perfeitamente estar ela sujeita à determinada condição. Tanto assim que, no leito de morte, ele citou as palavras que lhe haviam sido ditas pelo Senhor:
"Se teus filhos guardarem o seu caminho, para andarem perante a minha face fielmente, com todo o seu coração e com toda a sua alma, nunca, disse, te faltará sucessor ao trono de Israel." (1Rs 2:4)
Houve profecias do Antigo Testamento que se cumpriram à risca na primeira vinda de Cristo. Outras - que descreviam Suas orelhas como sendo furadas, Ele afundando em águas profundas, cães andando ao Seu redor e Sua voz sendo ouvida através de chifres de unicórnios - não foram cumpridas. O literalista deve sustentar que tais profecias deverão ter cumprimento e que o Senhor ainda terá de sofrer novas humilhações.
Temos demonstrado que a interpretação literal da profecia do Antigo Testamento leva à extravagância e ao absurdo. Mostraremos, agora, que conduz, também, à própria contradição. Ezequiel diz quatro vezes que, no dia em que Israel for restaurado, o ofício de sacerdócio será reservado aos filhos de Zadoque, apenas (40:46; 43:19, 44:15 e 48:11). Jeremias declara que então todos os Levitas serão sacerdotes (33:18), enquanto que Isaías afirma que Deus levantará sacerdotes e levitas de todas as nações (66:20,21). Como poderão explicar isso os que se atêm exclusivamente à letra?

A interpretação literal não faz apenas que um profeta do Antigo Testamento contradiga outro, mas leva o Antigo Testamento a contradizer o Novo. Ezequiel fala do templo reconstruído e de sacrifícios pelo pecado. De conformidade com os pré-milenistas, haverá sacrifícios, outra vez, durante o milênio. As "Notas Scofield"
[o1] dizem:
"Sem dúvida, esses sacrifícios serão "in memoriam", i.e., unicamente comemorativos do grande sacrifício de Cristo na cruz."
Isso é inaceitável, porém, uma vez que Ezequiel os qualifica como "ofertas pelo pecado" e os descreve como "expiatórios". Ora, o Novo Testamento insiste em que todo o sistema de cerimônias carnais está abolido, em vista de sua inutilidade. Os estatutos e ritos foram para sempre pregados na cruz de Cristo. Da lei cerimonial e dos sacrifícios podemos dizer com Martinho Lutero:
"Como Moisés, estão mortos e enterrados e que nenhum homem saiba onde se encontram." "Um templo onde houvesse o ritual de holocaustos, agora, seria a mais ousada negação do todo-suficiente sacrifício de Cristo e da eficácia do Seu sangue para expiação. Aquele que dantes oferecia sacrifícios confessava o Messias. Quem o fizesse agora O negaria, solene e sacrilegamente." (A Estrutura da Profecia, de Douglas, citada na obra Ezequiel, de Fairbairn)
Podemos acrescentar que, quando Jesus disse:
"[...] a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai." (Jo 4:21)
Ele determinou o desaparecimento total, e para sempre, de todo culto meramente localizado.
Se o leitor ainda se sente perturbado porque as profecias de reconstrução do templo e de restauração à terra parecem, de fato, dever ser interpretadas literalmente, faça a si mesmo a seguinte pergunta: Se os profetas se tivessem referido à Igreja do Novo Testamento sem empregar imagens de Israel de antigamente, mas em termos da graça e da verdade neo-testa-mentárias, teriam sido compreendidos? Se houvessem proclamado as glórias do povo de Cristo, não mediante os símbolos da terra, do templo e dos sacrifícios, mas na riqueza e plenitude da linguagem do Novo Testamento, nada teriam transmitido. Nenhuma mensagem teriam levado aos santos daquela época, pois não poderiam suportar tal excesso de luz.

Lembremo-nos de que, quando Cristo veio, foi tão difícil — mesmo aos Seus discípulos, por Ele escolhidos — compreender Sua mensagem, que certa vez lhes disse:
"Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora." (Jo 16:12)
Só se utilizando de figuras conhecidas como a terra, o templo e os sacrifícios, podiam os profetas descrever o desconhecido. As bênçãos marcantes do passado seriam a porção do Israel de Deus, mais plenamente, sob a Nova Aliança. Assim, o reinado de Davi, que tinha levado libertação e felicidade a Israel, é usado para simbolizar libertação maior:
"[...] meu servo Davi será príncipe no meio delas." (Ez 34:24)
Os males que tinham advindo ao povo pelos seus pecados, na Velha Aliança, seriam removidos sob a Nova. Um dos maiores males, nos tempos do Antigo Testamento, foi a divisão entre Israel e Judá. Assim, o período abençoado do Novo Testamento é apresentado sob a imagem de Israel e Judá reunidos. Não foi o Antigo Testamento uma dispensação típica? Deve-se observar, de passagem, que, mesmo no Novo Testamento, não se evita o emprego da língua judaica tradicional, quando se fala do reino de Deus. No fim do livro de Atos, por exemplo, a fé que Paulo demonstrava em Cristo, a qual o havia levado a ser preso, é descrita como "a esperança de Israel" (At 28:20). Expressões do Velho Testamento como "consolação de Israel", "redenção de Israel" e "restauração do reino de Israel", são empregadas tanto com referência aos gentios como aos judeus (ver Lc 2:25,32).
Com frequência, pronunciam os profetas maldições sobre Edom, Filístia, Assíria, etc. Os que se atêm à letra afirmam que essas maldições ainda pertencem ao futuro. Entretanto, onde se encontram os edomitas, os filisteus, os assírios? Quem os pode encontrar? Zacarias predisse que as famílias de Davi, Natãn, Levi e Simei pranteariam cada uma a sua linhagem à parte (12:12-14). O literalista sustenta que isso ainda está por acontecer, mas ninguém, sobre a face da terra, pode hoje identificar a descendência de qualquer dessas famílias.

Quando contemplamos os vívidos quadros das coisas futuras descritas pelos profetas, muitas vezes com pequenos detalhes, devemos nos recordar das condições em que escreveram, a fim de que os possamos compreender. Usualmente, eles profetizavam em estado de êxtase, em circunstâncias sobrenaturais (ver 1Sm 10:10-12). Não perdiam as faculdades mentais; contudo, como Paulo, quando foi levado ao terceiro céu, talvez não pudessem dizer se estavam no corpo ou fora do corpo. Encontramos nas profecias, repetidamente, expressões como: "Eu estava no Espírito e ouvi"; "a mão do Senhor estava sobre mim;" "O Espírito do Senhor veio sobre mim." Devemos ter cuidado para não tomar ao pé da letra a descrição do que eles viram quando em condições sobrenaturais. Em êxtase ou transe, Pedro teve uma visão: um lençol e dentro dele animais quadrúpedes, répteis e aves. A princípio, considerou a visão sob o ponto de vista literal. Depois, compreendeu sua significação espiritual. Quando a mão do Senhor estava sobre Ezequiel e lhe foi determinado dramatizar tal fato, deitando-se sobre o seu lado direito durante 390 dias, comendo alimento cozido com esterco (4:9-12), alertemo-nos contra uma interpretação literal. Quando Deus ordenou a Oséas ir e tomar uma esposa da prostituição - uma meretriz - se tomarmos isso ao pé da letra, colocamos uma mancha no caráter puro e santo de Deus. Conforme disse João Calvino, se Oséas realmente se casou com uma mulher dessa qualidade, melhor seria que se houvesse escondido por toda a vida, do que desempenhar o papel de profeta.

Interpretar as profecias do Antigo Testamento sempre ao pé da letra, como muitos procuram fazer, é transformar em pedra o que Deus nos quis dar como pão.


continua...


[01] Notas Scofield - Bíblia editada em inglês, pelo Rev. C. I. Scofield, em 1909, com referências, anotações e comentários. Muitas edições têm sido posteriormente feitas e várias traduções publicadas.

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