sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Israel de Deus em Romanos 11 - Parte 4

...continuação.

Importante
: O texto a seguir é de autoria de O. Palmer Robertson, doutor em teologia pelo Union Theological Seminary, em Virgínia, EUA. Também é professor de Teologia e de Antigo Testamento.


3 - “E assim todo o Israel será salvo” (26a). A questão a ser considerada é se o Israel étnico terá ou não um futuro diferente daquele que Israel experimentara na era do evangelho. Os judeus foram salvos e continuarão a sê-lo em toda a dispensação presente. A questão é se o versículo 26 trata de uma atividade de conversão distinta por parte de Deus no Israel étnico imediatamente antes do retorno de Cristo ou junto com ele.
Em primeiro lugar, devemos eliminar qualquer interpretação incorreta desse versículo. A passagem, com frequência, é entendida como se dissesse: “E então todo o Israel será salvo”. A expressão kai houtos é interpretada como se possuísse um significado basicamente temporal: o endurecimento acontece a parte de Israel “até” que a plenitude dos gentios tenha chegado; mas então, depois disso, todo Israel será salvo.
Essa interpretação de kai houtos obviamente responde à questão que defende um futuro distinto para o Israel étnico. O “endurecimento” presente contrasta fortemente com uma salvação futura.
Entretanto, a expressão kai houtos simplesmente não significa “e então”, mas “e dessa maneira” ou “e dessa forma”. Das duzentos e cinco vezes, ou quase, que a palavra houtos aparece no Novo Testamento, em nenhuma ela tem significado temporal. [07] Paulo poderia muito bem ter dito kai tote, “e então”, mas disse especificamente kai houtos, “e dessa maneira”. [08] Uma leitura total de Romanos 11:26 surge quando essa interpretação mais precisa das verdadeiras palavras de Paulo: “E dessa maneira todo Israel será salvo”. Dessa maneira, por tal processo, portanto, dessa forma, da forma descritiva, Israel será salvo.
Com a expressão kai houtos em Romanos 11:26, Paulo não olha para o futuro além da “plenitude dos gentios”, mas para o passado. Ele lembra os processos fantásticos de salvação entre o povo judeu como acabara de descrever. De acordo com o padrão descrito nos versículos anteriores de Romanos 11, “todo o Israel será salvo”. Primeiro, as promessas e o Messias foram dados a Israel. Depois, no plano misterioso de Deus, Israel rejeitou o Messias e perdeu sua condição de privilegiado especial. Em consequência, a chegada do Messias foi anunciada aos gentios. As nações, seguir, obtiveram pela fé o que Israel não pôde encontrar na força de sua própria carne. Frustrados por ver as bênçãos do Reino messiânico serem colhidas pelos gentios, alguns judeus ficaram com ciúmes e, em consequência, também se arrependeram, creram e compartilharam as promessas que originalmente lhes foram feitas. “E dessa maneira” (kai houtos), por esse processo tão fantástico que continuará em toda a era presente “até” (achris hou) o ponto em que a totalidade dos gentios chegue, todo Israel será salvo. [09]
Finalmente, o “todo Israel” que há de ser salvo deve ser identificado. Há, pelo menos, cinco possibilidades diferentes. “Todo Israel” pode ser: 1) todos os descendentes étnicos de Abraão; 2) todos os descendentes étnicos de Abraão vivos quando Deus inicia uma obra especial entre o povo judeu; 3) a massa, ou, pelo menos, a grande maioria dos judeus vivos na época de uma atividade de salvação especial de Deus; 4) todos os israelitas eleitos dentro da comunidade de Israel; ou 5) judeus e gentios que juntos constituem a igreja de Cristo, o Israel de Deus.
Como as Escrituras não oferecem nenhum indício de uma “segunda chance” para a salvação depois da morte, a idéia de que todos os descendentes étnicos de Abraão serão salvos deve ser rejeitada. Essa conclusão é explicitamente confirmada pela asserção de Paulo de que “nem todos os descendentes de Israel são Israel” (Rm 9:6).
Talvez, a visão mais aceita atualmente seja a de que “todo Israel” se refira à massa ou à maioria dos judeus vivos quando o endurecimento de parte de Israel é levantado. “Todo Israel” estaria se referindo amplamente à nação como um todo, mas não necessariamente a cada indivíduo da nação. [10] Entretanto, nesse contexto, “todo” dificilmente poderia significar “a maioria”. O endurecimento no versículo 25 refere-se à obra de reprovação, conforme demonstrado anteriormente. Como Paulo diz, o princípio do endurecimento significa que “Deus lhes deu um espírito de atordoamento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (Rm 11:8). Se chegar o dia em que o princípio de reprovação é levantado de Israel, então cada israelita que vivia naquele tempo será salvo. Se nenhum israelita vivo naquele momento for condenado, então o princípio do endurecimento ou da reprovação ainda estará ativo. Se chegar um tempo em que não existirá mais endurecimento em Israel, então o resultado não será apenas a salvação da “massa”. A extinção desse princípio implicaria a salvação de “todos” num sentido completamente abrangente.
Portanto, a declaração de Paulo de que “todo Israel será salvo” significa que, um dia, todo israelita vivo alcançará a salvação? Essa interpretação compromete seriamente a questão. Primeiramente, Deus nunca se obrigou a salvar cada indivíduo de qualquer grupo de pessoas que fosse. Deus sempre salvou indivíduos dentre aqueles externamente organizados em uma comunidade de aliança. Assim, foi feita uma distinção entre Isaque e Ismael (Rm 9:6-9), entre Jacó e Esaú (9:10-13), entre os poupados e destruídos em volta do bezerro de ouro nos tempos de Moisés (9:14-16 citando Êx 33:19), entre os remanescentes fiéis e os descrentes nos tempos de Elias (Rm 11:2-4), entre os inimigos e os companheiros nos tempos de Davi (11:9,10), entre os crentes e os desobedientes nos tempos de Isaías (9:29; 11:8) e entre os salvos e os condenados de Israel, agora, neste tempo (11:5-7). Se esse padrão fosse mudado no futuro, incluiria um princípio estranho a toda a atividade redentora anterior de Deus, inclusive a atividade da nova aliança graciosa.
Outra complicação surge quando “todo Israel” é identificado com cada um dos israelitas vivos em algum momento no futuro. Essa complicação tem a ver com a identificação dos israelitas. Quem exatamente está incluído em “todo Israel”? Em todo esse capítulo, seguindo a linha de raciocínio, presume-se que um judeu deveria ser definido simplesmente com base na etnia. Mas essa suposição agora deve passar por um sério exame. Benno Jacob, famoso comentarista judeu de Gênesis, insiste que a descendência étnica não era a base principal para determinar a participação na antiga aliança. Ele diz:
“Na verdade, as diferenças de raças nunca foram um obstáculo para se juntar a Israel, que não conhecia o conceito de raça pura. A circuncisão tornava um homem de origem estrangeira israelita (Êx 12:48).” [11]
Quando Deus escolheu Abraão como instrumento de bênção para o mundo, deixou claro que qualquer gentio poderia se juntar à comunidade da aliança por meio do processo de proselitismo (Gn 17:12,13). Além disso, nenhuma legislação em Israel proibia o casamento de um prosélito egípcio com um prosélito assírio. A descendência dessa união seria totalmente israelita, embora completamente não-abraãmica na origem étnica. Entretanto, qualquer descendente étnico de Abraão poderia ser declarado não-israelita como resultado da transgressão da aliança (Gn 17:14). Por esses motivos, “Israel” jamais poderia ser definido unicamente segundo o perfil étnico.
No entanto, se for verdade que todos aqueles identificados com o judaísmo serão salvos um dia, assim a perspectiva do cristão sobre o evangelismo deveria mudar? Se uma pessoa rejeitar o evangelho cristão, deveria ser encorajada a considerar o judaísmo como alternativa? Se uma pessoa pudesse ser persuadida a converter-se ao judaísmo, não teria a garantia de salvação eterna caso estivesse vivo na época em que a obra poderosa da salvação em “todo Israel” começasse? Como muitos consideram essa época próxima, os cristãos não deveriam estar encorajando tantos gentios quanto possível a se tornar judeus, caso não estivessem dispostos a se tornar cristãos? O absurdo de tal sugestão parece óbvio.
No entanto, se todos os judeus um dia serão salvos e se é possível se tornar judeu pelo processo de proselitismo, no entanto, como esse procedimento pôde ser excluído como uma forma possível de salvação? No mínimo, o cristão de hoje teria de se regozijar com cada novo prosélito incluído na nação de Israel devido à possibilidade de salvação futura que essa conversão traria.
A idéia de “todo Israel” referir-se especificamente aos judeus étnicos está carregada de problemas. [12] Esse conceito ignora muitos aspectos da definição bíblica de Israel e contradiz a verdade de que Deus não garante que uma pessoa será salva se possuir determinadas qualificações externas. Essas considerações resistem fortemente a qualquer identificação de “todo Israel”, em Romanos 11:26, com todos os descendentes étnicos de Abraão vivos em algum momento no futuro.

continua...


[07] V. Arndt e Gingrich, em A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p. 602. À exceção do versículo em consideração, Paulo usa o termo aproximadamente setenta vezes. Todas essas ocorrências são atemporais, inclusive quatro casos em Rm 9:11. Várias passagens podem ser citadas na tentativa de estabelecer um significado temporal para kai houtos. As principais incluem Jo 4:6, At 17:33; 20:11; 28:14. Mas, em cada um desses casos, um significado atemporal fornece uma interpretação mais apropriada. F. F. Bruce, em The epistle of Pal to the Romans: an introduction and commentary (Grand Rapids, Eerdmans, 1963) p. 222, afirma que a expressão tem um significado temporal, mas não apresenta nenhuma evidência corroborante. James D. G. Dunn, em Romans 9-16, Word Biblical commentary (Dallas, Word, 1988) p. 681, declara que, depois de “até”, “não se pode excluir importância temporal da expressão, embora o sentido básico seja 'assim, dessa maneira'”. Mas, no fim, a importância dada a uma expressão não deveria corresponder ao seu “sentido básico”?
[08] Uma boa análise dessa questão num nível mais popular pode ser encontrada em D. Martyn Lloyd-Jones, The church and the last things (Wheaton, Crossway Books, 1998) p. 110.
[09] John Murray, em The epistle to the Romans, The new international commentary on the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1965, vol. 2, p. 97-8, diz que essa interpretação “e então” em Rm 11:26 conduz à asserção relativamente prosaica de que todo o Israel eleito será salvo. Ele está enfatizando a maneira fantástica (“e dessa maneira”) na qual essa salvação será realizada. A explicação de Paulo desse modo de salvação para Israel está longe de ser prosaica.
[10] Essa visão é corroborada por Morris em The epistle to the Romans, p. 420, e por Dunn em Romans 9-16, p. 681. Morris cita passagens do AT que usam a expressão “todo Israel” para se referir à nação como um todo, e não a cada um dos indivíduos (1Sm 12:1; 2Cr 12:1; Dn 9:11).
[11] The first book of the bible: Genesis. New York: KTAV, 1974, p. 233.
[12] N. T. Wright, em The climax of the covenant: Christ and the law in Pauline theology. Edinburgh: T. & T. Clark, 1991, p. 253 certamente está correto ao rejeitar a idéia de uma teologia de duas alianças na qual Deus mantém intacta sua aliança com Israel e faz outra aliança para a salvação dos gentios. Para obter uma representação dessa visão, v. Lloyd Gaston, “Paul and the Torah”, em Anti-semitism and the foundations of Christianity, Alan Davies, org. New York, Paulist Press, 1979, p. 66.

4 comentários:

  1. Robertson argumenta:
    "Se chegar o dia em que o princípio de reprovação é levantado de Israel, então cada israelita que vivia naquele tempo será salvo. Se nenhum israelita vivo naquele momento for condenado, então o princípio do endurecimento ou da reprovação ainda estará ativo. Se chegar um tempo em que não existirá mais endurecimento em Israel, então o resultado não será apenas a salvação da “massa”. A extinção desse princípio implicaria a salvação de “todos” num sentido completamente abrangente."

    Há um problema com essa interpretação. A idéia de que, uma vez retirado o véu, toda pessoa necessariamente se salva é relativamente recente. É compreensão geral dentro do cristianismo, desde o início, que ninguém pode ser salvo sem que o Espírito o ilumine. Mas a idéia de que a iluminação leva NECESSARIAMENTE à salvação é bem mais recente, da época da reforma ou pouco antes. Que eu saiba (e ficarei agradecido se, estando errado, for corrigido), nenhum autor antigo havia defendido isso.

    Parece-me estranho fazer a interpretação básica de um texto depender de uma idéia que só foi afirmada séculos depois do próprio texto. Um leitor do primeiro século não conhecia os escritos de Calvino e não teria nenhum motivo para julgar impossivel que o espírito de profundo sono será retirado, mas mesmo assim alguns permanecerão descrentes. A idéia da graça irresistível nunca havia sido afirmada.

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  2. Renato,

    Entendi que Robertson só tece essas consideração em virtude de alguns pensaram dessa forma hoje. Ou seja, ele não está dizendo que tal ideia sempre existiu, mas apenas está combatendo aqueles que tem formulado sua teologia com tal pensamento.

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  3. Olá Mac

    Não afirmo que Robertson está dizendo que tal pensamento sempre existiu. Todos sabemos que a doutrina da graça irresistível nasceu do calvinismo. Ocorre que, ele usa essa doutrina como argumento, tentando mostrar que seria absurdo imaginar um tempo futuro em o véu seja retirado da nação israelita. Tenho duas críticas a esse tipo de argumentação:

    1. Só faz sentido para uma pequena fração da cristandade (os calvinistas).
    2. Um leitor do primeiro século não poderia ver essa dificuldade que Robertson vê. Portanto é o tipo de análise que se afasta, e não se aproxima, da leitura original.

    Isso é uma prova absoluta contra esse argumento de Robertson? Talvez não. Quanto à minha posição particular, acho que ja tornei evidente que eu creio numa época de grande despertamento espiritual entre os judeus.

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  4. Renato,

    Acho que Robertson tem em mente os leitores modernos que insistem numa futura conversão em massa dos judeus, quando usa a doutrina da graça irresistível, já que o dispensacionalismo como conhecemos é algo recente.
    Caso contrário, a sua crítica é válida.

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