sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Israel de Deus em Romanos 11 - Parte 4

...continuação.

Importante
: O texto a seguir é de autoria de O. Palmer Robertson, doutor em teologia pelo Union Theological Seminary, em Virgínia, EUA. Também é professor de Teologia e de Antigo Testamento.


3 - “E assim todo o Israel será salvo” (26a). A questão a ser considerada é se o Israel étnico terá ou não um futuro diferente daquele que Israel experimentara na era do evangelho. Os judeus foram salvos e continuarão a sê-lo em toda a dispensação presente. A questão é se o versículo 26 trata de uma atividade de conversão distinta por parte de Deus no Israel étnico imediatamente antes do retorno de Cristo ou junto com ele.
Em primeiro lugar, devemos eliminar qualquer interpretação incorreta desse versículo. A passagem, com frequência, é entendida como se dissesse: “E então todo o Israel será salvo”. A expressão kai houtos é interpretada como se possuísse um significado basicamente temporal: o endurecimento acontece a parte de Israel “até” que a plenitude dos gentios tenha chegado; mas então, depois disso, todo Israel será salvo.
Essa interpretação de kai houtos obviamente responde à questão que defende um futuro distinto para o Israel étnico. O “endurecimento” presente contrasta fortemente com uma salvação futura.
Entretanto, a expressão kai houtos simplesmente não significa “e então”, mas “e dessa maneira” ou “e dessa forma”. Das duzentos e cinco vezes, ou quase, que a palavra houtos aparece no Novo Testamento, em nenhuma ela tem significado temporal. [07] Paulo poderia muito bem ter dito kai tote, “e então”, mas disse especificamente kai houtos, “e dessa maneira”. [08] Uma leitura total de Romanos 11:26 surge quando essa interpretação mais precisa das verdadeiras palavras de Paulo: “E dessa maneira todo Israel será salvo”. Dessa maneira, por tal processo, portanto, dessa forma, da forma descritiva, Israel será salvo.
Com a expressão kai houtos em Romanos 11:26, Paulo não olha para o futuro além da “plenitude dos gentios”, mas para o passado. Ele lembra os processos fantásticos de salvação entre o povo judeu como acabara de descrever. De acordo com o padrão descrito nos versículos anteriores de Romanos 11, “todo o Israel será salvo”. Primeiro, as promessas e o Messias foram dados a Israel. Depois, no plano misterioso de Deus, Israel rejeitou o Messias e perdeu sua condição de privilegiado especial. Em consequência, a chegada do Messias foi anunciada aos gentios. As nações, seguir, obtiveram pela fé o que Israel não pôde encontrar na força de sua própria carne. Frustrados por ver as bênçãos do Reino messiânico serem colhidas pelos gentios, alguns judeus ficaram com ciúmes e, em consequência, também se arrependeram, creram e compartilharam as promessas que originalmente lhes foram feitas. “E dessa maneira” (kai houtos), por esse processo tão fantástico que continuará em toda a era presente “até” (achris hou) o ponto em que a totalidade dos gentios chegue, todo Israel será salvo. [09]
Finalmente, o “todo Israel” que há de ser salvo deve ser identificado. Há, pelo menos, cinco possibilidades diferentes. “Todo Israel” pode ser: 1) todos os descendentes étnicos de Abraão; 2) todos os descendentes étnicos de Abraão vivos quando Deus inicia uma obra especial entre o povo judeu; 3) a massa, ou, pelo menos, a grande maioria dos judeus vivos na época de uma atividade de salvação especial de Deus; 4) todos os israelitas eleitos dentro da comunidade de Israel; ou 5) judeus e gentios que juntos constituem a igreja de Cristo, o Israel de Deus.
Como as Escrituras não oferecem nenhum indício de uma “segunda chance” para a salvação depois da morte, a idéia de que todos os descendentes étnicos de Abraão serão salvos deve ser rejeitada. Essa conclusão é explicitamente confirmada pela asserção de Paulo de que “nem todos os descendentes de Israel são Israel” (Rm 9:6).
Talvez, a visão mais aceita atualmente seja a de que “todo Israel” se refira à massa ou à maioria dos judeus vivos quando o endurecimento de parte de Israel é levantado. “Todo Israel” estaria se referindo amplamente à nação como um todo, mas não necessariamente a cada indivíduo da nação. [10] Entretanto, nesse contexto, “todo” dificilmente poderia significar “a maioria”. O endurecimento no versículo 25 refere-se à obra de reprovação, conforme demonstrado anteriormente. Como Paulo diz, o princípio do endurecimento significa que “Deus lhes deu um espírito de atordoamento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (Rm 11:8). Se chegar o dia em que o princípio de reprovação é levantado de Israel, então cada israelita que vivia naquele tempo será salvo. Se nenhum israelita vivo naquele momento for condenado, então o princípio do endurecimento ou da reprovação ainda estará ativo. Se chegar um tempo em que não existirá mais endurecimento em Israel, então o resultado não será apenas a salvação da “massa”. A extinção desse princípio implicaria a salvação de “todos” num sentido completamente abrangente.
Portanto, a declaração de Paulo de que “todo Israel será salvo” significa que, um dia, todo israelita vivo alcançará a salvação? Essa interpretação compromete seriamente a questão. Primeiramente, Deus nunca se obrigou a salvar cada indivíduo de qualquer grupo de pessoas que fosse. Deus sempre salvou indivíduos dentre aqueles externamente organizados em uma comunidade de aliança. Assim, foi feita uma distinção entre Isaque e Ismael (Rm 9:6-9), entre Jacó e Esaú (9:10-13), entre os poupados e destruídos em volta do bezerro de ouro nos tempos de Moisés (9:14-16 citando Êx 33:19), entre os remanescentes fiéis e os descrentes nos tempos de Elias (Rm 11:2-4), entre os inimigos e os companheiros nos tempos de Davi (11:9,10), entre os crentes e os desobedientes nos tempos de Isaías (9:29; 11:8) e entre os salvos e os condenados de Israel, agora, neste tempo (11:5-7). Se esse padrão fosse mudado no futuro, incluiria um princípio estranho a toda a atividade redentora anterior de Deus, inclusive a atividade da nova aliança graciosa.
Outra complicação surge quando “todo Israel” é identificado com cada um dos israelitas vivos em algum momento no futuro. Essa complicação tem a ver com a identificação dos israelitas. Quem exatamente está incluído em “todo Israel”? Em todo esse capítulo, seguindo a linha de raciocínio, presume-se que um judeu deveria ser definido simplesmente com base na etnia. Mas essa suposição agora deve passar por um sério exame. Benno Jacob, famoso comentarista judeu de Gênesis, insiste que a descendência étnica não era a base principal para determinar a participação na antiga aliança. Ele diz:
“Na verdade, as diferenças de raças nunca foram um obstáculo para se juntar a Israel, que não conhecia o conceito de raça pura. A circuncisão tornava um homem de origem estrangeira israelita (Êx 12:48).” [11]
Quando Deus escolheu Abraão como instrumento de bênção para o mundo, deixou claro que qualquer gentio poderia se juntar à comunidade da aliança por meio do processo de proselitismo (Gn 17:12,13). Além disso, nenhuma legislação em Israel proibia o casamento de um prosélito egípcio com um prosélito assírio. A descendência dessa união seria totalmente israelita, embora completamente não-abraãmica na origem étnica. Entretanto, qualquer descendente étnico de Abraão poderia ser declarado não-israelita como resultado da transgressão da aliança (Gn 17:14). Por esses motivos, “Israel” jamais poderia ser definido unicamente segundo o perfil étnico.
No entanto, se for verdade que todos aqueles identificados com o judaísmo serão salvos um dia, assim a perspectiva do cristão sobre o evangelismo deveria mudar? Se uma pessoa rejeitar o evangelho cristão, deveria ser encorajada a considerar o judaísmo como alternativa? Se uma pessoa pudesse ser persuadida a converter-se ao judaísmo, não teria a garantia de salvação eterna caso estivesse vivo na época em que a obra poderosa da salvação em “todo Israel” começasse? Como muitos consideram essa época próxima, os cristãos não deveriam estar encorajando tantos gentios quanto possível a se tornar judeus, caso não estivessem dispostos a se tornar cristãos? O absurdo de tal sugestão parece óbvio.
No entanto, se todos os judeus um dia serão salvos e se é possível se tornar judeu pelo processo de proselitismo, no entanto, como esse procedimento pôde ser excluído como uma forma possível de salvação? No mínimo, o cristão de hoje teria de se regozijar com cada novo prosélito incluído na nação de Israel devido à possibilidade de salvação futura que essa conversão traria.
A idéia de “todo Israel” referir-se especificamente aos judeus étnicos está carregada de problemas. [12] Esse conceito ignora muitos aspectos da definição bíblica de Israel e contradiz a verdade de que Deus não garante que uma pessoa será salva se possuir determinadas qualificações externas. Essas considerações resistem fortemente a qualquer identificação de “todo Israel”, em Romanos 11:26, com todos os descendentes étnicos de Abraão vivos em algum momento no futuro.

continua...


[07] V. Arndt e Gingrich, em A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature, p. 602. À exceção do versículo em consideração, Paulo usa o termo aproximadamente setenta vezes. Todas essas ocorrências são atemporais, inclusive quatro casos em Rm 9:11. Várias passagens podem ser citadas na tentativa de estabelecer um significado temporal para kai houtos. As principais incluem Jo 4:6, At 17:33; 20:11; 28:14. Mas, em cada um desses casos, um significado atemporal fornece uma interpretação mais apropriada. F. F. Bruce, em The epistle of Pal to the Romans: an introduction and commentary (Grand Rapids, Eerdmans, 1963) p. 222, afirma que a expressão tem um significado temporal, mas não apresenta nenhuma evidência corroborante. James D. G. Dunn, em Romans 9-16, Word Biblical commentary (Dallas, Word, 1988) p. 681, declara que, depois de “até”, “não se pode excluir importância temporal da expressão, embora o sentido básico seja 'assim, dessa maneira'”. Mas, no fim, a importância dada a uma expressão não deveria corresponder ao seu “sentido básico”?
[08] Uma boa análise dessa questão num nível mais popular pode ser encontrada em D. Martyn Lloyd-Jones, The church and the last things (Wheaton, Crossway Books, 1998) p. 110.
[09] John Murray, em The epistle to the Romans, The new international commentary on the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1965, vol. 2, p. 97-8, diz que essa interpretação “e então” em Rm 11:26 conduz à asserção relativamente prosaica de que todo o Israel eleito será salvo. Ele está enfatizando a maneira fantástica (“e dessa maneira”) na qual essa salvação será realizada. A explicação de Paulo desse modo de salvação para Israel está longe de ser prosaica.
[10] Essa visão é corroborada por Morris em The epistle to the Romans, p. 420, e por Dunn em Romans 9-16, p. 681. Morris cita passagens do AT que usam a expressão “todo Israel” para se referir à nação como um todo, e não a cada um dos indivíduos (1Sm 12:1; 2Cr 12:1; Dn 9:11).
[11] The first book of the bible: Genesis. New York: KTAV, 1974, p. 233.
[12] N. T. Wright, em The climax of the covenant: Christ and the law in Pauline theology. Edinburgh: T. & T. Clark, 1991, p. 253 certamente está correto ao rejeitar a idéia de uma teologia de duas alianças na qual Deus mantém intacta sua aliança com Israel e faz outra aliança para a salvação dos gentios. Para obter uma representação dessa visão, v. Lloyd Gaston, “Paul and the Torah”, em Anti-semitism and the foundations of Christianity, Alan Davies, org. New York, Paulist Press, 1979, p. 66.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O Israel de Deus em Romanos 11 - Parte 3

...continuação.

Importante
: O texto a seguir é de autoria de O. Palmer Robertson, doutor em teologia pelo Union Theological Seminary, em Virgínia, EUA. Também é professor de Teologia e de Antigo Testamento.


Romanos 11:17-24


Essa passagem, com a referência ao enxerto de Israel, é comumente interpretada como se referindo a um futuro distinto para o Israel étnico. Presume-se que a figura de linguagem do novo enxerto necessariamente implique a inclusão maciça de um tempo futuro quando Deus tratará especialmente de Israel.
Entretanto, a argumentação de Paulo compara especificamente a experiência dos crentes israelitas com a dos crentes gentios contemporâneos . Os gentios estão sendo “enxertados” no povo de Deus para receber as bênçãos da redenção por crerem (v. 20). O enxerto acontece quando eles praticam a fé.
O que acontece ao povo judeu, antes descrente, que crê? Ao sentir o ciúme provocado pelo ministério do apóstolo, qual é o relacionamento dele com o verdadeiro inventário de Deus?
Não há nada na imagem do novo enxerto que sugira um atraso na incorporação do israelita crente. Cada judeu que crê torna-se parte das bênçãos da oliveira. O ministério atual do evangelho é o catalisador para a salvação de judeus exatamente da mesma maneira que o é para a de gentios. O principal ponto do argumento do apóstolo sobre o processo do enxerto é que os judeus experimentam a salvação e a incorporação no povo de Deus precisamente da mesma maneira que os gentios. Nada nessa imagem de enxerto comunica a idéia de uma inclusão distinta e maciça dos judeus em algum momento no futuro.
“Irmãos, não quero que ignorem este mistério, para que não se tornem presunçosos: Israel experimentou um endurecimento em parte, até que chegue a plenitude dos gentios. E assim todo o Israel será salvo.” (Rm 11:25,26a)
Esses versículos são a principal razão da controvérsia. Eles se apoiam no argumento que defende um futuro distinto para o Israel étnico. Três aspectos dessa passagem deveriam ser observados em particular:

1 - “Israel experimentou um endurecimento em parte” (v. 25). A expressão “em parte” (apo merous) costuma ser interpretada como tendo significado temporal. A passagem, portanto, ficaria: “Israel experimentou um endurecimento por algum tempo”. Mas essa interpretação não tem muito apoio. É improvável que a expressão tenha significado temporal em qualquer parte do Novo Testamento. [04] A expressão declara que um “endurecimento parcial” aconteceu a Israel ou que “parte de Israel” foi endurecida. Qualquer desses dois entendimentos é congruente com a discussão anterior de Paulo referente a um remanescente de Israel que será salvo. O apóstolo provavelmente, está dizendo que uma parte de Israel foi endurecida. Mas, seja como for, “em parte” não tem significado temporal. Essa expressão não fornece base exegética para a idéia de que Deus pretende iniciar a atividade de salvamento especial em Israel em algum momento no futuro.

2 - “Experimentou um endurecimento em parte, até que chegue a plenitude dos gentios” (v. 25). Inicialmente, pode parecer que a palavra “até” (achris hou) implica que o endurecimento de Israel acabará depois que a plenitude dos gentios esteja concluída. [05] Entretanto, o significado de “até” em Romanos 11:25 tem sido erroneamente avaliado. Na verdade, o termo sozinho não pode definir a questão de um futuro distinto para o Israel étnico.
Para confirmar esse entendimento devemos considerar a natureza de “endurecimento”. Paulo, antes nesse capítulo, usa a terminologia de endurecimento. Ele afirma que os eleitos em Israel obtiveram a salvação, mas que os outros “foram endurecidos” (v. 7). Modificando a fraseologia de sua citação corroborante do Antigo Testamento, o apóstolo ressalta a soberania divina nesse endurecimento. Paulo, em vez de manter a forma negativa de asserção em Deuteronômio para concluir que Deus não deu a Israel mente que entenda, olhos que vejam e ouvidos que ouçam (Dt 29:4), Paulo transforma a sentença numa afirmativa: “Deus lhes deu um espírito de atordoamento, olhos para não ver e ouvidos para não ouvir” (Rm 11:8).
Endurecimento nesse versículo anterior, em Romanos 11, está claramente ligado à soberania de Deus de eleger alguns em Israel. Aqueles que não são escolhidos são endurecidos por Deus.
Em João 12:40, é encontrada a mesma terminologia de endurecimento, que explica por que os judeus não crêem na mensagem de Jesus:
“Por esta razão eles não podiam crer, porque, como disse Isaías noutro lugar: 'Cegou os seus olhos e endureceu-lhes o coração'.” (v. 39,40)
Outras passagens do Novo Testamento usando a terminologia do endurecimento podem referir-se tanto aos homens que endurecem seus corações no pecado como a Deus que endurece seus corações (v. 2Co 3:14; Mc 3:5; 6:52; 8:17; Ef 4:18). Conforme a narrativa em Êxodo, a situação é semelhante para o endurecimento do coração do faraó, que o atribui às vezes a Deus e às vezes ao próprio faraó.
Seja como for, de acordo com Romanos 11, o “endurecimento” que acontece com parte de Israel está totalmente de acordo com a realização histórica do princípio da eleição e reprovação. O endurecimento refere-se não apenas à condição de coração endurecido dos israelitas, mas ao próprio ministério da eleição. Deus, na sabedoria de sua graça, de todo o povo que morreu pelo pecado, elegeu alguns para a vida eterna, enquanto o restante foi endurecido.
Como o endurecimento sempre fez parte da obra de salvação de Deus, é aconselhável parar antes de afirmar precipitadamente que ele cessará. É bom notar que Romanos 11:25 não faz, de fato, essa afirmação. O texto não diz: “O endurecimento cessará em Israel”. Certamente, o texto não está declarando que o princípio da abrangência da eleição de Deus de alguns e endurecimento de outros, um dia, não terá aplicação em Israel.
O texto, na verdade, afirma uma continuação do endurecimento dentro de Israel durante a era presente. Os decretos de Deus de eleição e reprovação continuam a operar sozinhos na história. Como foi feita uma distinção de soberania entre os irmãos Jacó e Esaú, em toda a era presente o endurecimento continuará.
Mas, e quanto ao futuro? O apóstolo não diz explicitamente que o endurecimento continuará “até” um certo ponto no tempo? Essa asserção não implica um fim do endurecimento? A resposta a essas perguntas cruciais esta na extensão da força da palavra “até” em Romanos 11:25.
A expressão interpretada como “até” (achris hou) é basicamente conclusiva. Mas especificamente, ela indica o terminus ad quem, e não o terminus a quo. A expressão levanta as questões “até” um certo ponto ou “até” que uma certa meta seja alcançada. Em si, ela não determina a situação depois do término. As circunstâncias posteriores podem ser conhecidas somente pelo contexto. A importância desse ponto fica evidente quando a natureza do término é analisada com mais cuidado.
Em muitos casos, o término indicado por achris hou tem um aspecto conclusivo, que torna irrelevante as questões sobre reversão das circunstâncias que anteriormente prevaleciam. Isso é óbvio especialmente em casos nos quais há questões de conclusão real ou figurada envolvidas. Por exemplo, Atos 22:4 declara que Paulo perseguiu os cristãos “até” a morte. A questão de “até” não é que a atividade de Paulo de perseguir cessou depois que os cristãos morreram, mas que ele perseguiu os cristãos “até” o último momento, o momento da finalização.
Hebreus 4:12 declara que a espada do Espírito penetra “até” dividir alma e espírito. Novamente, o significado de “até” não é que a penetração cessa e outra condição prevalece a partir desse momento, mas que “até” tem um significado finalizador. A penetração continua tanto quanto possível. Se houvesse a possibilidade de uma penetração maior, o processo continuaria.
O uso de achris hou em contextos escatológicos também ilustra seu caráter essencialmente conclusivo. A expressão leva as ações e condições até o último momento, sem reforçar a reversão das circunstâncias que prevalecem depois.
De acordo com 1Coríntios 11:26, a comunidade cristã é orientada a anunciar a morte do Senhor “até” que ele chegue. A questão não é que chegará um dia em que a ceia do Senhor não será mais celebrada, mas que essa celebração continuará “até” o fim.
Em Mateus 24:38, o povo dos tempos de Noé comeu e bebeu “até” Noé entrar na arca. O ponto dessa asserção não é que chegou um dia em que o povo não comeu nem bebeu mais, mas que continuou a comer e a beber até que seu eschaton chegou.
Em 1Coríntios 15:25, Paulo declara que Cristo deve reinar “até” que todos o seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. A questão não é que um dia virá em que Cristo não reinará mais, mas que ele deve continuar a reinar até o último inimigo ser subjugado. [06]
Da mesma forma, Romanos 11:25 fala de término escatológico. Em toda a era presente, até o retorno final de Cristo, o endurecimento continuará em parte de Israel. Com frequência, “até” é entendido como se marcasse o começo de uma nova situação em relação a Israel. Dificilmente considera-se que seria mais natural interpretar “até” no sentido de alcançar um ponto terminal escatológico. A expressão não sugere um novo começo depois de um término, mas a continuação de uma circunstância até o fim.
Seja qual for o caso, “endurecimento até” não indica, em si, que um período subsequente ao endurecimento parcial do Israel étnico acontecerá. A expressão é comumente interpretada como terminus ad quem. Pelo menos, “endurecimento até”, em si, não denota se Deus tratará, no futuro, do Israel étnico de uma forma nova e distinta.
Com tudo isso em mente, a atenção agora se volta para o escrito crucial de Romanos 11:26. Se não é possível encontrar uma referência clara a um futuro distinto para o Israel étnico no versículo 25, quer na expressão “em parte” que em “endurecimento até”, essa referência só pode ser encontrada na polêmica declaração do versículo 26.

continua...


[04] William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature. Chicago: University of Chicago Press, 1957, p. 507, encontra um significado temporal para a expressão apenas em Rm 15:24, mas mesmo nesse caso é extremamente duvidoso.
[05] Leon Morris, The epistle to the Romans. Grand Rapids: Eerdmans, 1988, p. 420, n. 113, interpreta esse “até” como “até o tempo em que”. Mas sua análise desdobra a palavra além do significado natural da expressão.
[06] Joachim Jeremias, em The eucharistic words of Jesus. New York: Charles Scribner's Sons, 1966, p. 253, faz a seguinte avaliação: “Na verdade, no Novo Testamento, achris hou com o subjuntivo aoristo sem an, normalmente, precede uma referência a alcançar o objetivo escatológico, Rm 11:25; 1Co 15:25; Lc 21:24”.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O Israel de Deus em Romanos 11 - Parte 2

...continuação.

Importante:
O texto a seguir é de autoria de O. Palmer Robertson, doutor em teologia pelo Union Theological Seminary, em Virgínia, EUA. Também é professor de Teologia e de Antigo Testamento.


B. Possíveis referências em Romanos 11 à intenção de Deus de tratar o Israel étnico de maneira distinta no futuro.


As referências em Romanos 11 ao acordo atual de Deus com Israel costumam ser completamente ignoradas. Ao mesmo tempo, as partes do capítulo que poderiam ser entendidas como referência a um propósito especial para Israel no futuro concentram todas as atenções. Mas um exame mais cuidadoso dessas passagens pode gerar um entendimento diferente da tendência do capítulo. Várias seções específicas merecem uma consideração especial:
“Pergunto, pois: Acaso Deus rejeitou o seu povo? De maneira nenhuma! Eu mesmo sou israelita, descendente de Abraão, da tribo de Benjamin. Deus não rejeitou o seu povo, o qual de antemão conheceu.” (Rm 11:1,2)
A negação de Paulo de que Deus rejeitou seu povo, em geral, é entendida como se indicasse que Deus ainda pretende tratar Israel de maneira distinta no futuro. Essa interpretação baseia-se em uma leitura específica da pergunta do apóstolo. A pergunta de Paulo: “Deus rejeitou seu povo?” é entendida como: “Deus rejeitou o Israel étnico com respeito ao seu plano especial para o futuro?”.
Obviamente, uma construção como essa imediatamente predispõe à casa em favor daqueles que defendem um futuro distinto para o Israel étnico. Supondo que a pergunta tenha essa ênfase, a exclamação de Paulo: “De maneira nenhuma!” simplesmente confirma o que é natural à forma pressuposta da pergunta.

Mas o contexto da pergunta do apóstolo sugere um entendimento completamente diferente de sua ênfase. A pergunta de Paulo é mais radical do que muitos podem pensar. Ele pergunta: “Deus rejeitou o Israel étnico completamente em seu propósito de redenção?”. Existe alguma esperança para a continuação de uma atividade salvadora de Deus entre os israelitas? Teriam eles tropeçado de tal forma que cairiam (de uma vez) (v. 11)?

O Israel étnico rejeitou o Messias. Ele crucificou Cristo. Não seria lógico, portanto, concluir que Deus o rejeitaria? Se um gentio rejeitar Cristo, estará condenado. Israel, como nação, rejeitou Cristo; portanto, não deveria estar perdida? Por que Deus deveria continuar a operar seu salvamento entre os judeus? Eles receberam todos os favores especiais do Senhor (Rm 9:4,5) e ainda rejeitaram seu Cristo. Por que não deveriam ser rejeitados completamente?

Paulo cita a evidência em Romanos 11:1 para apoiar uma resposta negativa a essa pergunta indica a verdadeira ênfase desse pensamento. Deus rejeitou seu povo? Não, pois o próprio apóstolo é israelita!

Paulo, para responder a essa pergunta, não arrola evidências que se relacionem ao futuro dos judeus. Ele próprio é israelita, definindo assim que Deus continua a incluir os judeus em seus propósitos de redenção.

A resposta do apóstolo não trata da nação de Israel no futuro distante, mas da sua condição na era presente. O próprio apóstolo é israelita e compartilha a salvação trazida pelo Messias.

Romanos 11:5 resume melhor a resposta de Paulo à pergunta colocada no versículo 1. Deus rejeitou legitimamente o Israel étnico de forma que não haja nenhuma esperança de redenção aos remanescentes da nação? Não, pois “hoje também”, de acordo com os acordos de Deus com Israel no passado, “há um remanescente escolhido pela graça”.

A resposta de Paulo a sua própria pergunta não explica os detalhes de uma virada maciça dos judeus para Cristo em algum ponto no futuro. Ela trata, na verdade, da condição presente de Israel na era do evangelho. A resposta do apóstolo indica, de fato, que o Israel étnico tem um futuro, porém, ele faz parte da era presente da proclamação do evangelho.
“Mas se a transgressão deles significa riqueza para o mundo, e o seu fracasso, riqueza para os gentios, quanto mais significará a sua plenitude! […] Pois se a rejeição deles é a reconciliação do mundo, o que será a sua aceitação, senão vida dentre os mortos?” (Rm 11:12-15)
O apóstolo, claramente, está descrevendo uma sequência temporal nesses versículos. O povo judeu rejeita seu Messias; depois, os gentios acreditam. Assim, os judeus provocados ficam com ciúmes e retornam à fé, e o mundo recebe uma bênção ainda mais rica em consequência desse retorno.
Uma interpretação dessas experiências contrastantes de Israel presume que sua “rejeição” coincide com a era presente do evangelho, enquanto sua “aceitação” ocorrerá mais tarde, precisamente no fim da era presente ou depois que a era presente da proclamação do evangelho tiver terminado.

Entretanto, essa sequência temporal pode ser vista de uma outra perspectiva. É possível considerar que o ciclo completo foi cumprido na era presente da proclamação do evangelho. Paulo, no contexto, compara a experiência de Israel com a dos gentios. De acordo com o versículo 30, os gentios foram desobedientes antes, mas agora receberam a misericórdia. Israel, da mesma forma, que agora é desobediente, pode, também agora, receber misericórdia. Tanto para os gentios como para os judeus, o ciclo completo da passagem de um estado de desobediência para o de misericórdia acontece na era presente.

Dessa perspectiva, a “aceitação” de Israel se referiria ao enxerto de judeus crentes na era presente, que alcançaria a consumação quando sua “plenitude” fosse concretizada. A experiência paralela do mundo gentio não oferece nenhuma defesa da idéia de que o período de rejeição a Israel coincide com a era presente do evangelho, enquanto sua aceitação está reservada à era subsequente.

É crucial para o entendimento desses versículos a declaração de Paulo de que, por meio do ministério apostólico atual aos gentios, ele espera “salvar alguns” dentre os judeus (v. 14). O salvamento de “alguns” não deve ser entendido como a salvação de poucos judeus, que não seria comparável com “plenitude” a ser salva no final dos tempos.

Muito ao contrário, esse salvamento de “alguns” está totalmente relacionado com um dos principais temas de Romanos 11. Como diz Paulo, permanece ainda nesse tempo um “remanescente” escolhido pela graça (v. 5). Isso não significa que aqueles “alguns” que o apóstolo espera pessoalmente salvar são o “remanescente” de que ele trata em toda a passagem. Mas a idéia do salvamento de alguns e a da conservação de um remanescente estão inter-relacionadas. A esperança de Paulo de que alguns sejam salvos por meio de seu ministério baseia-se no princípio de que um “resto” permanecerá durante as eras.

Um remanescente também sugere imediatamente a idéia de ser pouco e insignificante. Mas o uso da palavra remanescente não determina, em si, a proporção do todo a ser salvo. Ela está ligada, na verdade, à intervenção soberana de Deus de realizar a salvação dos homens apesar da expectativa, do ponto de vista humano, de que todos pereceriam. [03] É, portanto, bastante apropriado interpretar a “plenitude” e a “aceitação” de Israel da perspectiva da atividade salvadora atual de Deus. O argumento do apóstolo parte de um princípio verdadeiro em toda a história redentora. Embora externamente possa parecer que Deus tenha rejeitado os judeus, na verdade, ele está operando sobrenaturalmente para salvar alguns deles. Todos em Israel passarão pelo mesmo processo pelo qual os judeus estão sendo recebidos atualmente e acrescidos ao número total. Pois o “remanescente escolhido pela graça” abrange os mesmos indivíduos que a “plenitude” (i.e., totalidade) de Israel. O olho do homem não é capaz de conceber a extensão desse número. Mas o olho da fé sabe que o número total está sendo cumprido. Por isso, não é necessário nem apropriado anunciar uma data futura na qual o remanescente será suplantado pelo todo. O “remanescente” complementado de Israel é exatamente a sua “plenitude”.


continua...


[03]
Cf. V. Herntrich em Theological dictionary of the New Testament, trad. Geoffrey W. Bromiley, Gerhard Kittel, org. (Grand Rapids, Eardmans, 1967, vol. 4) p. 204: "Se o remanescente é preservado somente pela obra de Deus, o conceito não pode ser quantitativo no sentido de que o remanescente tenha de ser pouco. O conceito certamente faz uma referência à grandeza do julgamente, mas não ao pequeno número daqueles que serão salvos (mas v. Dt 4:27; 28:62; Is 10:22)". Herntrich indica Mq 4:7, onde o remanescente é comparado com uma "nação forte" e Mq 5:6,7, onde é comparado com o orvalho. Em passagens que não descrevem especificamente o povo remanescente, a palavra é aplicada às grandes áreas de terra que "ficaram" para ser possuídas depois da conquista de Josué (Js 13:1), e à madeira "restante" com a qual é feito um ídolo (Is 44:17,19). Embora um remanescente possa representar pouco, basicamente denota apenas o que "ficou", quer seja pouco ou muito.

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